Verso do poema "(Des)motivo" - do livro "Moinho" - 1ª edição 2006; 2ª edição 2021

quarta-feira, 1 de março de 2017

Estas mal traçadas linhas *

Evaldo Balbino

Cesse de uma vez meu sonho vão
de que o verso brilhe para todos.
Os olhos estão cansados, outras luzes
acariciam as faces das pessoas.
O neon das cidades mostra corpos
e mesas com copos de cerveja.
As fotos espargem água insana
pelas redes sociais e insaciáveis.
Os perfis, os textos tantos e tontos
curtidos, vistos e não lidos.
O jogador de futebol esbanja poses
entre mulheres seminuas e barcos
num harém que é motivo de festa
para se publicar e comentar.
O taxista outro dia me disse, convicto:
“Nada de livros, não quero palavras;
só guiar o carro que é meu pão de cada dia”.
E ele está certo, o homem sério
com seus filhos, esposa e a casa simples
comprada a longas e duras prestações.
Seu carro range como range a vida
entre o ar pesado e o seco asfalto
da cidade em chamas de concreto.
Todos falam do poeta, dizem dele,
porque é mister que se fale
da poesia agora e sempre
sem que nela se esbarre.
Amam as mãos vazias do bardo,
plenas só do falar que nunca cessa.
Amam suas mãos e desconhecem
o que diz a letra, o que fala a imagem
em cada verso feito em contraluz.
Não quero mais escrever estas linhas,
este bordado que a custo reluz,
estas palavras em verso, pantomimas
olhando silentes o silêncio sem luz.

* A quem escrever o que escrevo? Por que dizer tanto a pouca gente? Eis um poema inédito em livro, acabado de se escrever agora, num pensamento meu sobre esta escrita que me persegue e segue um difícil curso pela vida.

© 2017 Evaldo Balbino

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