Evaldo Balbino
Outro dia, na fila do hipermercado, uma
mulher me atendia solícita, sorridente. Então me perguntou se eu queria
parcelar o valor da compra.
"Gostaria sim", eu lhe disse.
"Sei que nem tudo vai ser possível, mas o que for de bazar e pet dá
pra dividir. Sempre divide. E vai ajudar no meu bolso, na conta no fim do
mês".
Ela sorriu de novo e foi fazendo lá na
máquina suas operações aparentemente fáceis, complicadíssimas para o meu
próprio entendimento. Para minha surpresa, o computador dividiu praticamente
tudo em gordas três parcelas sem juros. Diante do meu espanto, a funcionária
disse alegre:
"Engraçado, nem sempre divide quase tudo
assim! Esse sistema não é entendível mesmo!"
Devolvi-lhe, agradecido, o sorriso. E gostei
muito daquele "entendível" solto, sem peia nenhuma, livre de amarras.
O seu falar foi doce, foi um ar bom de se respirar no meio de tanta gente, numa
fila infindável e estressada atrás de mim.
Na saída do hipermercado, vi dois cães
namorando. Magros, sujos, mas alegres em seus volteios, em seus jogos de
sedução sem receios. Enfrentando uma vida seca, lá estavam eles com vida e
fulgor.
Cheguei a casa e quis ter uma vida assim. Não
na secura ou na umidade, não numa fila ou fora dela. Porém uma vida simples,
como as palavras daquela mulher. Uma vida concreta, instintiva como as dos cães
em seu idílio no estacionamento do shopping.
Então sonhei. Deitado sobre a cama, acordado,
sonhei que eu era outro. Que dizia coisas simples, palavras sem freios. Sonhei
que andava sem regras. Que amava como um cão.
A vida poderia ser mais simples. Não poderia?
Deveria ser menos cheia de esquisitices, de dificuldades desnecessárias, de
palavras ensaiadas, de poses para retrato.
Enquanto muitas vezes busco palavras com que
dizer as coisas deste jeito e não de outro, enquanto me perco procurando gestos
mais adequados para transmitir a alguém o sentimento mais preciso, enquanto
tento isso ou mais aquilo, a vida vai passando sem pensar em si mesma. E vou
vendo ao meu redor fatos, pessoas, bichos, muitos seres vivendo de modo mais
espontâneo, mais leve, mais livre. Pelo menos essa é a minha sensação.
Então fui possuído por um espírito benfeitor.
Sobre a cama fui visitado pela Vontade com "v" maiúsculo, a Vontade
imensa de não me prender a gramáticas, de dizer desdizendo, de fazer
desfazendo, de andar por caminhos diferentes e não usuais.
E à
força de sonhar assim, fui ganhando asas. O que eram raízes prendendo o meu
corpo no lençol foi se transformando em asas: estas palavras que me pastoreiam
altas, estas linhas que me guiam nuvens. E vou escrevendo, desde então. Vou
escrevendo ao léu, ao prazer que me toma de falar. No prazer de viver
instintivamente. De modo entendível e transparente.
© 2017 Evaldo Balbino
Que lindo e profundo. Amei.
ResponderExcluirPosso ler com meus alunos os?
Renata, querida. Lógico que pode! O texto, se não circular, não tem sentido na solidão. Divulguemos a literatura!!!! Beijos amigos!!!!!
ExcluirLindo Evaldo!!! Adorei!!!
ResponderExcluirMuito obrigado, Ana Paula. Caso possa divulgar o blog e os textos, agradeço muito. Um forte abraço.
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