Evaldo Balbino
Os
meus amigos ficaram na rua pulando o Carnaval ontem de noite. Devem ter
atravessado as avenidas, os blocos vários, as esquinas bêbadas e alegres, as
fantasias espalhafatosas, a madrugada.
E
eu fiquei em casa, parado. Sem samba, suor e cerveja, como diria Caetano
Veloso. Se pelo menos eu tivesse ido pra rua caminhar um pouco! Na avenida
perto de casa as pessoas andam com seus amigos e cachorros. Com gatos não,
porque esses meninos são indomáveis pra ser guiados em coleiras.
Eu
devia ter saído. Mas não saí. Fiquei em casa, sentado diante da tevê. Olhando novela,
jornal e outras maravilhas na tela que me deixa parado, sentado no sofá. Só a
mão erguida de vez em quando pra mudar os canais: uma atividade física e tanto!
Dormi
tarde e acordo agora, também tarde. São dez horas da manhã. Tem um brioche
sobre a mesa. Solitário. E o recheio é de goiabada.
Tudo
bem que não é daquela goiaba lá da roça, orgânica, cultivada pelos homens do
campo e pelo tempo, comida por pessoas e por passarinhos. Comida também por
bichinhos escondidos na polpa deliciosa. E minha mãe reclama. “Goiaba boa era a
de antigamente! Hoje em dia, só bicho!”
Esse
antigamente de mamãe deve mesmo ser muito antigo, pois quando eu tinha uns dez
anos, ou seja, há trinta anos, as goiabas eram pomo de discórdia entre mim e os
bichinhos vorazes. “Credo, menino, vai comer isso?! Tem bicho!” E minha gula
nada dizia, mas agia. A boca imensa de menino pequeno ia aparando a goiaba,
passando de soslaio pelos vermezinhos, deixando-os vivos pra vida, mas
aproveitando a massa sobrante.
Pois
a goiabada de dentro do brioche me olha, petulante. Passo pela mesa afetando
desdém. Dou de ombros ao que me chama. Pego o telefone e ligo decidido pra
academia de musculação.
“É
da Academia Força do Atleta?”
A
voz de uma garota atende com tédio, pois é Carnaval e ela está trabalhando. É
uma garota, porque a conheço. Está sempre lá na recepção.
“Sim,
senhor”.
Senhor!!!
Pra que tanta formalidade, se sou apenas um mero mortal querendo malhar, cuidar
do corpo que tanto reclama de dores, de encurtamentos, de uma vida sedentária
por demais?!
Enfrento
o tédio da funcionária. Não me dou por vencido. Enfrento o tédio e a
formalidade dormida.
“Vocês
vão abrir quais dias neste Carnaval?”
“Bem,
senhor, estamos abertos hoje e depois só na quarta-feira de cinzas, depois das
14 horas”.
Que
está aberto hoje eu já sei, senão ninguém atenderia ao telefone. Penso isso com
deboche, com ares de ranzinza, mas o brioche está lá encima da mesa, sorrindo e
rindo pra mim. Abandono o ar de sarcasmo e vou adiante.
“E
hoje fica até que hora?”
“Bem,
tem duas alunas aqui na piscina. Já estão quase terminando. Como não tem aluno
nenhum na musculação, é provável que a gente feche antes das 13”.
“Mas
antes das 13 quando, mais ou menos?”
“Talvez
daqui a pouco. O senhor sabe: Carnaval, todo mundo some...”.
“É
verdade.” Digo simulando decepção, tentando enganar a mim mesmo. E pra me
animar: “As pessoas pulam muito estes dias, né?! Isso já é exercício”. Ela ri
do outro lado. Mal sabe a moça que não pulo Carnaval, que sou um toco de pau
fincado no chão, um poste na beira da estrada. Nem o vento consegue me balançar
nesta falta de jeito que tenho pra dança. Como fico no meu silêncio pensante, a
garota busca se retratar:
“Mas
o senhor é aluno? A academia está muito vazia. Como eu disse, só duas senhoras.
Mas a gente pode esperar pelo senhor”. Ela fala isso por educação, porque sou
cliente, porque pago, porque deve respeitar um freguês. Afinal, negócio é negócio!
“Bem,
não quero incomodar”. E lembro, pra minha salvação: “Você disse que abre na
quarta, né?!”
“Sim.”
“Pois
então. Sem problema. Na quarta apareço aí. Muito obrigado, tá?!”
Desligo
o telefone e tento me socorrer, livrar a consciência de qualquer pecado. Ainda
mais por estes dias, festa da carne, a quaresma se achegando. Deus me livre!!!
Pecados devem ser evitados: a preguiça, a luxúria, a inveja, a vaidade de um
corpo forte, a avareza, a ira e (é claro) a gula. Ah, meu Deus, a gula! A
indefensável e inelutável gula! Que inveja tenho dos que passam a água! Nem pão
pra engordar o corpo. Atravessam a vida como Cristo no deserto e não aceitam
ofertas escandalosas. Que inveja, meus Deus!! Mas o que estou dizendo??!! Nada
de inveja, nada de gula!
Saio
contrariado de perto do telefone e passo rente à mesa. O brioche escancara o
riso, riso de Carnaval pros meus pobres olhos humanos.
Decido, como o fraco e submisso andarilho diante do
tentador no deserto. Pego da garrafa um café saboroso e misturo com leite gordo,
com nata portentosa. Parto uma fatia do brioche, só uma, com um pouquinho de
goiabada só. E prometo, sem mentir porque mentira também é pecado: comerei só
está fatia. Esta fatia e nada mais!