Evaldo
Balbino
Desde menino eu já escutava a expressão
“pé frio”. E os ouvidos da meninice tentavam entender essas duas palavras
juntas, não vendo nelas nada mais do que um pobre pé entregue aos frios do
inverno lá da minha cidadezinha, Resende Costa.
E lá na pequena urbe não faltavam pés
para tal sofrência. Geadas pela manhã bem cedo espalhavam-se naqueles tempos
sobre os campos, as ramas silvestres, os pés raquíticos das matas. Na
hort`couve os pés de alface, as couves mesmas, as folhas do quiabo, as ramas
dos chuchus e pepinos – tudo era cobertura branca reclamando maus tratos que a
natureza perpetrava. E eu via os pés indo para os trabalhos diversos. Muitos de
chinelas havaianas, ou imitadoras destas, trilhando a frialdade da terra
castigada pela umidade do orvalho. Lavouras, comércio incipiente, trabalhos
domésticos nas casas quadradas de janelas abertas para a rua, escolas recebendo
meninos (alguns descalços, muitos de sandálias abertas, a minoria de sapatos
fechados e protetores). E tudo vivendo nas alturas de Resende Costa.
Foi nos primeiros anos de escola que
aprendi que o clima da nossa cidade é tropical de altitude. Vi pompa no nome,
as palavras condizendo com o frio da cidade, com os ventos soprando nos morros
sem fim. E vi a referência também ao calor, que o verão era de nos matar. E nem
dinheiro tínhamos, a maioria das crianças, para comprar um chup-chup que fosse,
aquele vagabundo chup-chup feito de Q-Suco, que era vendido nas ruas por alguns
empreendedores caseiros da cidadezinha. Aí eu entendia mais, porque o
conhecimento traz entendimento, o porquê daqueles extremos de minha terra: ora
um calor de sufocar, ora um frio de fazer o queixo tremer e os pés ficarem
gelados.
Entre frio e calor naquela época, minha
cabeça de criança não conseguia ver outros sentidos na expressão “pé frio”.
Mente infantil é fértil, é poeta por natureza, por intuição vinda direta de
Deus, sem necessidade nenhuma de musas e de outros intermediários. Mas ali, a
mente soprada pelos ventos e resfriada pelo frio de Resende Costa só pensava na
literalidade da palavra “frio”.
Em cada mês de junho, eu gostava dos
textos lidos na escola sobre festas juninas, os quais me falavam de fogueiras
crepitando nos terreiros debaixo de bandeiras e bandeirolas. Então um calor
gostoso me tomava, e me sentia ao lado das fogueiras festejando o São João.
Vindo de família cuja religião não tinha dessas festas, eu imaginava a fogueira
crepitando minha vida e meu coração. Só imaginava, porque até mesmo na escola
as tais fogueiras não compareciam: as festas eram de dia e sem lenhas
crepitando. E as festas de verdade, as que eram alimentadas pelo fogo quente e
amigo, essas davam o ar de sua graça somente nos livros de leitura e nas
redações que eu fazia como se tudo fosse verdade: “E a fogueira crepitava no
terreiro...”.
Meus pais não eram muito favoráveis à
minha participação em tais festejos na escola. Mesmo assim lá ia eu, chapéu na
cabeça, bigode feito a carvão (um bigode bem malandro) e uma camisa xadrez. Ia
feliz da vida para dançar com meu par. Isso era um modo de namoro também, de
flerte sem eira nem beira, os corpos pertinhos no calor da dança, os olhos
fingindo ingenuidade que nunca existia.
A primeira vez que ouvi outro sentido
para a expressão em tela, “pé frio”, foi na escola mesmo. Mas não foi
professora nenhuma que me ensinou não. Foi um colega dizendo de outro que
tentara colar na prova e se dera mal. “O Emerson tem pé frio mesmo!”. A
professora flagrara o ato e levara o infrator para a inspetora. Resultado: uma
suspensão de fazer qualquer um morrer de vergonha e de medo da reprovação no
fim do ano. Pois falo aqui da época em que a Escola reprovava sim, sem
volteios, sem mão piedosa na cabeça. E a retenção poderia ser consequência de
faltas sucessivas, de perda das matérias a ser cobradas nas avaliações
implacáveis.
Mesmo tendo aprendido o novo
significado, continuei com o pensamento fixo nos pés sentindo frio em Resende
Costa nos meses de inverno, principalmente em junho e julho. E muitas vezes,
depois de crescido e já vivendo em Belo Horizonte, me gabei da minha cidade com
as pessoas: “Frio de verdade é o de Resende Costa! Vocês aqui não: qualquer
esfriadinha, sai todo mundo de blusa! Isso é fraqueza demais da conta!”. E as
pessoas riam de modo forçado, como que dizendo lá vem o outro com essa mania de
comparar. Tanto fui falando isso com as gentes, que acabou virando mania. E à
pergunta “Mas você não vai se agasalhar, nem uma blusinha?!”, eu ia logo
dizendo que BH é quente, um calor danado. E até brincava: “Isso aqui tá quase
um forno do capeta!”.
Depois de anos com esse costume, no
entanto, estou agora pagando língua. Nos últimos três anos tenho sofrido. Tenho
usado blusa com mais frequência. E confesso: tenho calçado meias a torto e a
direito. Neste 2017, por exemplo, de um inverno nunca visto por mim nos 22 anos
que resido nesta cidade, tenho colocado em cada pé duas meias para que os ossos
não doam. Uma amiga caçoa de mim, dizendo que já estou com sintomas de velhice,
o pé frio denunciando a minha idade.
Que
seja isso. Porque o tempo, graças a Deus, vai passando para mim também. De
qualquer forma, tomara que eu seja agora apenas alguém de pés frios, e não um
pé frio pela vida afora.
© Evaldo Balbino 2017
Adorei Evaldo .Leitura tão boa...
ResponderExcluirParabéns , amigo.
Muito obrigado pelo carinho. Se a leitura caiu no seu gosto, ela cumpriu sua função. Muito obrigado mesmo. Um forte abraço.
ExcluirÓtima crônica, Evaldo! Ah! E lida com os pés frios...
ResponderExcluirDília, é nessas horas, em que o pé está frio, que é bom lermos, lermos e lermos... e também tomarmos um bom vinho. Obrigado pela leitura. Que bom que você tenha gostado! Um forte abraço.
ResponderExcluirAmei sua crônica, Evaldo. E como nossas histórias de vida dialogam ... A literatura nos permite ressignificar nossas experiências. Ressignifiquei as minhas ao ler seu texto. Obrigada por nos brindar com tão belo texto.
ResponderExcluirOi, Juçara. De fato a literatura tece pontes, nos comunica. Fico feliz que tal ressignificação tenha se operado em sua leitura. Obrigado pelo carinho da atenção dada ao meu texto. Um forte abraço!!!
ResponderExcluirQuerido amigo e poeta, mesmo que o frio lhe ponha os pés frios, você jamais será um "pé frio"! Ao contrário: você é um tremendo "pé quente". A d o r e i. Texto que dá uma saudade danada na gente pelas coisas boas da meninice que já vai longe. Beijos carinhosos.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirQuerida amiga eterna, desde sempre e para sempre, obrigado pela leitura. Obrigado pelo "pé quente" dito/escrito por você. As palavras têm poder. Que Deus a ouça, sempre! Um beijo grande no seu coração!!
Excluir