By Maurício de Sousa
Evaldo Balbino
No início de cada aula, na 2ª série da Escola Estadual Assis Resende, copiávamos do quadro a ficha escolar composta pelos nomes do
estabelecimento, da diretora, da professora, da série e do aluno. Essa atividade
se repetia de segunda a sexta-feira toda semana. Com isso os cadernos ficavam
bem arranjados e, diziam, íamos afinando a escrita. O nome da professora não se
perdeu da minha memória: Maria Salomão. Mas o que ficou mesmo foi o Tia Turca, pois
assim era que a chamávamos.
Abrimos aquele ano letivo de 1985 no
prédio que era o Ginásio Nossa Senhora da Penha, pois o Grupo Escolar Assis
Resende estava em reforma. Só alguns meses depois é que fomos para o antigo
edifício lá no alto da cidade. Antes eu gostava de correr pelos corredores do
ginásio, mas meu sonho mesmo eram as tábuas-corridas do Assis Resende. Meus pés
concretizaram isso quando professores, alunos, móveis, livros, papéis e tudo o
mais fomos transportados para a escola anciã. Chão novo, tintura renovada, jovens
bancos e carteiras, uma biblioteca com livros novinhos, janelas de madeira e
vidro abertas com ares antigos. E o chão de tábua-corrida, assoalho correndo
sobre um porão escuro que se via pelas frestas. E eu vislumbrando meu medo
escondido lá embaixo.
Tia Turca se mudou conosco para a
velha-nova edificação. Nossa sala de aula ficava do lado de cima do prédio,
ladeando com a Santa Casa e com o Necrotério. E na escola vicejavam saúde e
vida de meninos cheios de agitação para dar e vender.
A professora era brava, sabia domar a desordem
dos educandos com olhos graves e austeros gestos. Mas também alcançava nos amar
com sentimentos nobres. Não tinha jeito de não aquietarmos o facho diante dela
e do mesmo modo não havia como não gostarmos do seu jeito afável de cobrança. Copiava
as lições no quadro e depois ia passando pelas carteiras, tirando dúvidas, apondo
outras informações, intervindo nas dificuldades dos nossos passos. Hoje repasso
o sério trabalho que ela fez conosco naquele ano. Sei deveras que ela
contribuiu com a construção das bases da minha cultura e com as de meus colegas.
De vez em quando nos levava para a
biblioteca, onde eu me deliciava com os livros de literatura que tinham acabado
de chegar à escola. Foi ali, nessa época, que li A arca de Noé, de Vinicius de Moraes. Na capa da edição, uma montanha
com a arca no topo e com muitos, muitos animais por todos os lados, nas
escarpas descendo, sobre a arca, no ar, alguns até quase indo para além das
bordas da portada. Foi também ali que minha gula e minha devoção conheceram O menino poeta de Henriqueta Lisboa e o
Erico Veríssimo para crianças: viajei pelas aventuras de Tibicuera, escutei a
música na barriga do urso, brinquei com os três porquinhos, conheci a vida do
elefante Basílio e, mais que tudo, participei das aventuras do Avião Vermelho.
Certa vez minha mãe não pôde ir à reunião
de pais para pegar o boletim com o resultado bimestral. Um boletim num envelope
bonito, onde eu havia colado Magali ofertando uma caixa de bombons vazia para
sua mãe. Que era dos bombons?! O gato comera, ou melhor, a gulosa Magali os
tinha consumido. Mamãe acabou indo dias depois daquela reunião. Quando ela
chegou à escola, nossa aula estava acontecendo justamente na biblioteca. Bateu à
porta, e tia Turca foi recebê-la. Ambas passaram entre as mesas dispostas irregularmente
pela grande sala ao lado das prateleiras, e os olhos de mamãe me procurando
entre tantos meninos até me encontrarem, atentos.
As duas pararam rente à mesa próxima ao
quadro. Enquanto lhe entregava o documento, a professora foi tecendo elogios ao
aluno que eu era e dando-lhe parabéns por educação tão bem cultivada lá no canteiro
do berço. Os olhos de minha mãe me olharam, brilhando de alegria e ao mesmo
tempo alfinetando amorosamente o meu frágil corpo, porque discordavam até certo
ponto do que dizia a mestre naquele momento. Era como se estivesse pensando:
“Ah, se a dona Maria comesse um saco de sal junto com esse menino todo dia! Ia
ver como ele corta uma bagunça que não tem jeito!”.
Bem convencido, no entanto, eu sabia que minha mãe voltaria orgulhosa para nossa casa. Mesmo pensando assim, ela me esperaria com o boletim alegre em suas mãos.
© Evaldo Balbino - 2018