Verso do poema "(Des)motivo" - do livro "Moinho" - 1ª edição 2006; 2ª edição 2021

sábado, 11 de março de 2017

Brioche no sábado de Carnaval


Evaldo Balbino

          Os meus amigos ficaram na rua pulando o Carnaval ontem de noite. Devem ter atravessado as avenidas, os blocos vários, as esquinas bêbadas e alegres, as fantasias espalhafatosas, a madrugada.
E eu fiquei em casa, parado. Sem samba, suor e cerveja, como diria Caetano Veloso. Se pelo menos eu tivesse ido pra rua caminhar um pouco! Na avenida perto de casa as pessoas andam com seus amigos e cachorros. Com gatos não, porque esses meninos são indomáveis pra ser guiados em coleiras.
Eu devia ter saído. Mas não saí. Fiquei em casa, sentado diante da tevê. Olhando novela, jornal e outras maravilhas na tela que me deixa parado, sentado no sofá. Só a mão erguida de vez em quando pra mudar os canais: uma atividade física e tanto!
Dormi tarde e acordo agora, também tarde. São dez horas da manhã. Tem um brioche sobre a mesa. Solitário. E o recheio é de goiabada.
Tudo bem que não é daquela goiaba lá da roça, orgânica, cultivada pelos homens do campo e pelo tempo, comida por pessoas e por passarinhos. Comida também por bichinhos escondidos na polpa deliciosa. E minha mãe reclama. “Goiaba boa era a de antigamente! Hoje em dia, só bicho!”
Esse antigamente de mamãe deve mesmo ser muito antigo, pois quando eu tinha uns dez anos, ou seja, há trinta anos, as goiabas eram pomo de discórdia entre mim e os bichinhos vorazes. “Credo, menino, vai comer isso?! Tem bicho!” E minha gula nada dizia, mas agia. A boca imensa de menino pequeno ia aparando a goiaba, passando de soslaio pelos vermezinhos, deixando-os vivos pra vida, mas aproveitando a massa sobrante.
Pois a goiabada de dentro do brioche me olha, petulante. Passo pela mesa afetando desdém. Dou de ombros ao que me chama. Pego o telefone e ligo decidido pra academia de musculação.
“É da Academia Força do Atleta?”
A voz de uma garota atende com tédio, pois é Carnaval e ela está trabalhando. É uma garota, porque a conheço. Está sempre lá na recepção.
“Sim, senhor”.
Senhor!!! Pra que tanta formalidade, se sou apenas um mero mortal querendo malhar, cuidar do corpo que tanto reclama de dores, de encurtamentos, de uma vida sedentária por demais?!
Enfrento o tédio da funcionária. Não me dou por vencido. Enfrento o tédio e a formalidade dormida.
“Vocês vão abrir quais dias neste Carnaval?”
“Bem, senhor, estamos abertos hoje e depois só na quarta-feira de cinzas, depois das 14 horas”.
Que está aberto hoje eu já sei, senão ninguém atenderia ao telefone. Penso isso com deboche, com ares de ranzinza, mas o brioche está lá encima da mesa, sorrindo e rindo pra mim. Abandono o ar de sarcasmo e vou adiante.
“E hoje fica até que hora?”
“Bem, tem duas alunas aqui na piscina. Já estão quase terminando. Como não tem aluno nenhum na musculação, é provável que a gente feche antes das 13”.
“Mas antes das 13 quando, mais ou menos?”
“Talvez daqui a pouco. O senhor sabe: Carnaval, todo mundo some...”.
“É verdade.” Digo simulando decepção, tentando enganar a mim mesmo. E pra me animar: “As pessoas pulam muito estes dias, né?! Isso já é exercício”. Ela ri do outro lado. Mal sabe a moça que não pulo Carnaval, que sou um toco de pau fincado no chão, um poste na beira da estrada. Nem o vento consegue me balançar nesta falta de jeito que tenho pra dança. Como fico no meu silêncio pensante, a garota busca se retratar:
“Mas o senhor é aluno? A academia está muito vazia. Como eu disse, só duas senhoras. Mas a gente pode esperar pelo senhor”. Ela fala isso por educação, porque sou cliente, porque pago, porque deve respeitar um freguês. Afinal, negócio é negócio!
“Bem, não quero incomodar”. E lembro, pra minha salvação: “Você disse que abre na quarta, né?!”
“Sim.”
“Pois então. Sem problema. Na quarta apareço aí. Muito obrigado, tá?!”
Desligo o telefone e tento me socorrer, livrar a consciência de qualquer pecado. Ainda mais por estes dias, festa da carne, a quaresma se achegando. Deus me livre!!! Pecados devem ser evitados: a preguiça, a luxúria, a inveja, a vaidade de um corpo forte, a avareza, a ira e (é claro) a gula. Ah, meu Deus, a gula! A indefensável e inelutável gula! Que inveja tenho dos que passam a água! Nem pão pra engordar o corpo. Atravessam a vida como Cristo no deserto e não aceitam ofertas escandalosas. Que inveja, meus Deus!! Mas o que estou dizendo??!! Nada de inveja, nada de gula!
Saio contrariado de perto do telefone e passo rente à mesa. O brioche escancara o riso, riso de Carnaval pros meus pobres olhos humanos.
Decido, como o fraco e submisso andarilho diante do tentador no deserto. Pego da garrafa um café saboroso e misturo com leite gordo, com nata portentosa. Parto uma fatia do brioche, só uma, com um pouquinho de goiabada só. E prometo, sem mentir porque mentira também é pecado: comerei só está fatia. Esta fatia e nada mais!

© 2017 Evaldo Balbino

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