Verso do poema "(Des)motivo" - do livro "Moinho" - 1ª edição 2006; 2ª edição 2021

terça-feira, 30 de maio de 2017

As doces tentações





A gente chega ao supermercado na maior alegria do mundo. Nada nem ninguém nos tirará a felicidade, a cara querendo fazer amigos com gente e bicho. O dia é bonito, apesar de elétrico num trânsito louco. As filas são imensas lá perante os caixas, mas aguardaremos, pacientes, que os funcionários nos atendam também com paciência e sorriso. Mesmo trabalhando muito, coitados, se deixarão contagiar pela beleza de hoje.
E mais ainda. A gente chega ao supermercado convictos de que as prateleiras não nos enganarão. Nada de comprar o supérfluo, aquilo que não consta na lista feita em casa, num acurado olhar que tudo vê e espreita. As contas sobem, a vida em sua base urge, e não podemos nos entregar a desmedidas que não cabem no bolso. E quem foi que disse que isso é motivo para não se estar feliz? Felicidade não se adquire consumindo com exageros.
Salgadinhos, chocolates, frituras industrializadas em pacotes cheios de sal, sorvete cremoso, balas de caramelo prometendo derreter-se aos poucos nos paladares ansiosos, enlatados daquilo que é mais caro e que vem das industrias cheio de conservantes, o arroz parboilizado quando o branquinho mesmo ou integral simples nos servem, latas coloridas de refrigerantes agenciados por inteligentes propagandas, a cerveja gelada e chamativa prometendo “descer redonda” nos dias quentes, o queijo padrão ou o moçarela ou ainda o importado quando podemos pegar o minas frescal ali mesmo gotoso e oferecido. A lista não termina nunca mais. E é proporcional aos nossos ziguezagues pelos corredores sem fim dos labirínticos supermercados.
O vilão mesmo é o açúcar. Mais ainda: tudo o que se faz com ele e que já vem pronto, pois, além de delicioso, é prático. Só de pensar em não ficar horas na cozinha preparando o bolo, o pudim, a sobremesa açucarada, os doces, os caramelos, as guloseimas que matam a fome e que tomam tempo para serem feitas. Tudo bem que tem os que gostam de ficar na cozinha. Nada contra. Eu, particularmente, não gosto é de lavar louça. Uma preguiça descomunal me toma e me sinto escravo do tempo. Minhas mãos e meu corpo reclamam. E há também os que gostam disso. Têm prazer em esfregar e esfregar panelas, fôrmas, talheres, copos. Do mesmo modo, não tenho nada contra. Acreditam que tenho uma cunhada adoradora de passar roupa! Sempre me fala que, se pudesse, ficaria passando roupa todos os dias, o dia inteiro. Aposto que se ela tivesse nascido na época do ferro a brasa não pensaria assim.
Voltando ao supermercado, mais especificamente ao açúcar vilão e atraente, temos um caminho a seguir, uma solução não tão saborosa, mas eficaz. Falo do açúcar diet, aquele que, pelo menos em nossa mente, não funciona. Mas acreditem: ele funciona mesmo. Conheço gentes que o usam e que juram ser ele supimpa.
Outra possibilidade, neste labirinto alimentício da vida cheio de armadilhas, é o adoçante simples e barato que pode nos servir e muito. Ele é muitas vezes famigerado, detestado por muitos, persona non grata quase sempre. Mas é também filho de Deus, ora! Assim como o açúcar. Parodiando as bíblias, digo que tudo é filho de Deus, mas nem tudo nos convém. Eu mesmo, se consumo açúcar, já vou dentro de uns três meses começando a dar adeus às minhas roupas e buscando outras que não me apertem tanto. Como diz muita gente por aí: “eu num se dô com açúca!”.
Mas cuidado com o adoçante, viu!? Nada de aspartame, nem pensar mesmo, que muitos dizeres embasados já cansaram de pontuar os riscos à saúde que essa substância pode apresentar. Além disso, cuidado também com um certo amargor que a maioria dos adoçantes tem. A vida já tem tantos amargores! Adocicar um pouco o viver não faz mal, não é mesmo?! O problema é que os adoçantes com sucralose, mais docinhos que os outros, são mais caros. E também há quem os destrate no que diz respeito aos males possíveis à saúde. Haja coragem de nossa parte! E também força, esforço e reforço dos nossos bolsos!
Outra coisa digo: tomo sempre certo cuidado com os adoçantes. Chega a ser uma hesitação que toma tempo lá no supermercado. Aquelas embalagens transparentes e lindas, que me dão medo e atraem. Perco muito tempo mesmo com elas. Mas que fazer?! O jeito é namorá-las, estudá-las com esmero, para ver se compensa ou não fazê-las nossas consortes, nossas amantes cotidianas.
Uns frasquinhos vêm com coisas de se amar. Uma xícara de café e de aroma agreste. Pequenas margaridas simples e magras, bonitas no seu existir mesmo podadas, dando um ar de natureza, de algo saudável e vivificante. Um copo cheio de suco e um canudinho em seu interior, esperando por boca sequiosa e preocupada com a saúde – tomara que que não seja um suco de pó seco e sem vida, com aquele aroma sintetizado como os sentimentos falsos. Laranjas fatiadas e maçãs inteiras, robustas, brilhando – nem pensamos que sejam frutas cheias de agrotóxicos; pensar isso nos intoxica. E tudo isso sobre mesa invisível, dando ar de leveza ao que comeremos e beberemos e, é logico, a todos nós – os esfomeados.
Mas eis que lá no centro de tudo, na mesma embalagenzinha, algo nos laça: um bolo redondo, delicioso, trajando cobertura densa e branca! Tudo bem que encimado de moranguinhos, mas isso não retira seu ar glutão e lerdo. É um bolo doce, com certeza. Dulcíssimo, de dar água na boca. E ele está ali, entre suco saudável, café diet, frutas benfazejas e margaridas aéreas como o ar. O que fazer então, diante de tamanho paradoxo?
Poderão dizer que é bolo para jejuns, feito com o adoçante a ser vendido dentro do lindo frasco. Mas quem me garante isso? E o bolo é bolo, no final das contas. Sua forma bojuda não me engana, antes me ama com olhos grandes, doces e dóceis.
Olho para o bolo que me olha. Olho para o bolo no desenho, e vou logo pensando no bolo que farei em casa. Um bolo real. Terei que lavar as louças depois, mas paciência. A comilança compensará.
Então pego o vidrinho de adoçante. O vidrinho indecente que me açula. Volto para casa sem mais culpas. A vida precisa ser adoçada.

© Evaldo Balbino 2017

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