By Elimar do Carmo, 2017
Seu nome de pia era Alício, mas o chamavam
Lico. Já as línguas escarninhas proferiam Lico Pacote, alcunha perversa das
ruas quando queriam bulir com o homem. Era de família de lenhadores, que
vendiam lenha rachada e carregada em lombos de burro. Mas ele, o Lico, além de
rachar lenhas em algumas casas, vivia de vagar pelas ruas de Resende Costa, sem
tino e sem rumo.
Magro e de barba rala, quase sempre
descalço e de saco nas costas, levava bugigangas desconhecidas por nós. Errava com
roupa larga, um cinto segurando a largura para que ela não caísse. De paletó ou
camisa sem mangas, usava ora um chapéu ou boné, ora nenhuma proteção na cabeça.
Ia sempre seguido de cães, os seus melhores e quiçá únicos amigos. De dois me
lembro bem: Cirica e Cheiroso.
Carregava seus apetrechos ensacados e não se desfazia deles para nada, nem mesmo quando se exaltava contra as pessoas que o molestavam. Errava
pelas ruas ensimesmado. No seu mundo, mas não em silêncio. Seu corpo andarilho ia
xingando ou conversando, falando coisas sem nexo, ora com alguém que o havia
irritado, ora com alguma pessoa que talvez nunca existira.
Entre os que zombavam dele, estavam muitas
crianças em sua teatral falta de maldade. E faziam isso de longe, pois tinham
medo. O homem vitimado revidava diversas vezes com pedradas impiedosas.
Três cenas me marcaram nas muitas vezes em
que o vi.
Uma foi quando eu estava na sala de minha casa,
vendo algum filme na tevê. De repente um estrondo, um estilhaçar de vidros esparramando-se
pelo chão. Uma pedra invadira o quarto de hóspedes ao lado e tinha vindo das
mãos do Lico. Nervoso lá na rua, ele vira o meu cunhado rindo à janela. E no
riso lera uma chacota. Então o ato desvairado. A pedra atingira em cheio a
vidraça. Meu cunhado jurou de pé junto que nada fizera. E isso perante os olhos
bravos do meu pai.
Outra feita, minha irmã e eu voltávamos do
centro da cidade. Quando passávamos ao lado do barranco de lixo, na entrada de
nossa rua, vimos crianças se engraçando com o Lico. Ele, de súbito, agarrou pelos
cabelos uma garota. Minha irmã ficou trêmula, vermelha, e ameaçou chamar a
polícia. Lico deixou a menina sem modos. Obedeceu à minha irmã como um filho,
resmungando, obedece a sua mãe.
A terceira cena foi na Escola Conjurados. Estávamos
na sétima série. Um professor tinha se atrasado, e ficamos aguardando em sala. Alguns
alunos, porém, acabaram indo para o corredor que dava para a rua. E lá fora, o
Lico nervoso, injuriando o ar que materializava algum malfeitor. Do outro lado
da rua, as casas de São Vicente. E entre elas e a escola, o homem em sua fúria.
Os colegas fora de sala começaram a mexer com ele, berrando repetidas vezes “Ô,
Lico Pacote!”. E os alunos gritavam e davam risadas escarnecedoras,
escancaradas. A exaltação do homem aumentou, e ele começou a jorrar pachouchadas
que excitavam ainda mais os seus carrascos. Não saciado com os palavrões, e
vendo os garotos na persistência, foi pegando pedras e atirando-as contra o
colégio. A meninada, trêmula, correu para a sala, mas com uma alegria trocista
nos corpos. Na rua, alguém da escola foi acalmar o Lico. E logo depois a
orientadora educacional entrou arrebatada na classe, puxando orelha de turma
tão desrespeitosa.
A derradeira notícia que tive do Lico, muitos
anos depois, foi que ele faleceu numa tentativa de fuga do lar de idosos em que
fora recolhido tempos antes.
Lembro nestas linhas que em 1987 se constituiu
no Brasil o 18 de maio como o Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Essa é justamente
a época de que extraio as memórias que tenho do Lico, reconstruindo-as. Tal dia
foi instituído numa busca por uma sociedade sem manicômios e preocupada com os
direitos das pessoas com transtornos mentais. Porém não basta “derrubarmos”,
quando possível, muros de instituições psiquiátricas que privam os pacientes de
viverem na sociedade. Não adianta isso, se não combatermos os preconceitos que
nela mesma brotam como erva daninha.
Muitas
pessoas caçoavam do Lico sim, mangavam de um homem que se destacava da maioria.
Ele explicitava nas ruas as diferenças que todos nós temos e que escondemos
muito mais do que entre quatro paredes. As nossas diferenças que nos espantam, nós
as guardamos no fundo lago de nós. Escondemos, acautelados, tudo o que em nós nos
molesta. E isso porque é mais fácil ser igual a todo mundo. Seguir uma onda é
mais confortável do que erigir nossos próprios movimentos.
© Evaldo Balbino 2017
Bela crônica. Lembramos que em cada cidade desse nosso Brasil existe um "Lico" ou uma "Lica" que só são lembrados pelo bullying desregrado de toda a sociedade. É uma prática mais presente entre colegiais, justo pela falta de amadurecimento dos mais novos. A escola bem que deveria trazer para dentro das salas de aulas esse tema e explicar o que significa não ter respeito com quem não tem culpa de ser como é. Mostrar também o sofrimento dessas pessoas. Uma simples aproximação delas, com atenção e palavras amigas causa uma diferença enorme, como foi relatado em uma outra crônica desse nível, de autoria de um professor, que por curiosidade, ainda criança, se aproximou de uma "Lica" em sua cidade natal, e só então conseguiu ver que ela não era como o povo todo a pintava. Se transformou em uma amizade respeitosa.
ResponderExcluirCaro Claudio, boa noite. De fato, há muito ainda que se trabalhar quanto a isso em nossa sociedade. E a Escola, de fato, deve ter um papel basilar nessa educação social. Obrigado pelo comentário. Um forte abraço.
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