Evaldo Balbino
As crianças
brincam. E adultos felizes, os que têm a infância durando conscientemente dentro
de si, também brincam.
Por isso estou
aqui brincando. Estou jogando com palavras, criando e recriando a minha e a
nossa vida. Estou seguindo aquilo que Freud constatou em nossa existência:
assim como as crianças brincam, criando mundos pela imaginação, o escritor faz
isso com palavras. Os escritores criativos embarcam em devaneios não para fugir
da realidade, mas para narrá-la de modo melhor. Assim também as crianças. Inventam
asas não no intuito de voarem para além desta vida, mas para mergulharem num voo
certeiro no âmago mesmo da sua experiência vital.
E voávamos muito
na minha infância. Como se voa hoje, é claro!
Se o adejar, no
entanto, permanece em sua essência, as formas de voo vão mudando em certos
aspectos. Mudam-se os brinquedos, muda-se o que é moda. O motor de tudo, porém,
continua. Continuam os nossos gestos com formas variadas sim, mas sempre com os
mesmos desejos.
Lá nos túneis de outrora, na minha cidadezinha, havia muitos barrancos não virgens, verdadeiros precipícios. E sua não virgindade era porque todos eram explorados por meninas e
meninos elétricos. Hoje tais paragens estão cheias de mato, com
mamoneiros, lobeiras e folhas de assa-peixe se alastrando por tudo. Desconfio
até que estejam abandonadas. As invenções de agora se fazem em outros cenários,
outras plataformas, principalmente as digitais. As cercas de arame farpado e
muros de placa ou de tijolo não contam. Porque criança não respeita tais
obstáculos.
E esses obstáculos
eram pulados para que as matas fossem desbravadas. Éramos bandeirantes que
buscavam ouro o mais fino, diamante o mais precioso e inalienável. Procurávamos
o devaneio sem o qual não sobrevivemos na vida. Nos barrancos de nossa
meninice, tudo era possível. Até mesmo o desmundo.
Espadas eram
tantas. Cabos feitos de sabugo de milho. Grão já maduro, debulhado e servido a
galinhas, pombos e humanos esfaimados de vida, alegria e gula. O sabugo ficava
para restolho a gado e para brinquedos infantis. Os cabos assim, de sabugo,
serviam de base onde se espetavam barrinhas finas de ferro. Eram varinhas que
sobravam do mundo adulto, principalmente nas construções civis onde os pedreiros
desprezavam os restos da ferragem usada para a estrutura das lajes.
Eram tantas as
espadas quantos fossem os heróis que pudessem manuseá-las. Éramos cavaleiros
indomáveis em cavalos imaginários.
Cavalos não
existiam mesmo. Só os de verdade, mas dos adultos. A imaginação dessa forma os
criava e os fazia galoparem pelo Grand
Canyon de nosso bairro, nos fundos de nossas hortas, lá onde podíamos sonhar
e campear. As façanhas se realizavam no pasto do Chicão ou no barranco do outro
lado da rua, mais para os fundos nos pastos do Lalado. Nossos ginetes eram
invisíveis. E eram lindos em suas formas, crinas levantadas ao vento, patas
coriscando o chão sob o rumor que as folhas dos bambuzais faziam no topo de um barranco.
E as folhas de bambu farfalhavam. Os caules lenhosos e flexíveis balançavam e
se roçavam. Rangiam para nos dar medo. Alguns dos meninos até tremiam, já
outros não. Aquelas vozes vegetais eram nossas companheiras, davam mais
realismo a nossas peripécias.
E em nossas aventuras
éramos venturosos. Heróis inabaláveis em suas vontades de viver. Lutávamos com
vontade, cada um defendendo seu território contra as hordas inimigas. As nossas
guerras eram pura vida, sem feridos e mortes. E golpes de espada atravessavam o
ar, batiam-se contra as paredes das ribanceiras e voltavam num eco destemido
para os nossos ouvidos. Era poeira fazendo densa cortina sobre os nossos medos
encenados naqueles palcos. Era tudo poeira e suor, o que depois demandaria
banho mais cuidadoso em casa. Isso para xingamentos das mães, para reclamações
dos pais. As contas de luz e água reverberariam mais depois essas bravuras de
amor.
E o
amor era tanto, que os nossos pais aceitavam, no final das contas, energias tamanhas
se desdobrando nos grandes espaços. E o céu sem fim, com seu azul profundo ou
seu ar espesso de nuvens cinzentas, abraçava a todos os guris e gurias que
corríamos pelos campos, pela poeira da vida vivida e nunca esquecida.
© Evaldo Balbino 2017
Nenhum comentário:
Postar um comentário