Verso do poema "(Des)motivo" - do livro "Moinho" - 1ª edição 2006; 2ª edição 2021

terça-feira, 23 de maio de 2017

De espadas e de heróis

Evaldo Balbino



As crianças brincam. E adultos felizes, os que têm a infância durando conscientemente dentro de si, também brincam.
Por isso estou aqui brincando. Estou jogando com palavras, criando e recriando a minha e a nossa vida. Estou seguindo aquilo que Freud constatou em nossa existência: assim como as crianças brincam, criando mundos pela imaginação, o escritor faz isso com palavras. Os escritores criativos embarcam em devaneios não para fugir da realidade, mas para narrá-la de modo melhor. Assim também as crianças. Inventam asas não no intuito de voarem para além desta vida, mas para mergulharem num voo certeiro no âmago mesmo da sua experiência vital.
E voávamos muito na minha infância. Como se voa hoje, é claro!
Se o adejar, no entanto, permanece em sua essência, as formas de voo vão mudando em certos aspectos. Mudam-se os brinquedos, muda-se o que é moda. O motor de tudo, porém, continua. Continuam os nossos gestos com formas variadas sim, mas sempre com os mesmos desejos.
Lá nos túneis de outrora, na minha cidadezinha, havia muitos barrancos não virgens, verdadeiros precipícios. E sua não virgindade era porque todos eram explorados por meninas e meninos elétricos. Hoje tais paragens estão cheias de mato, com mamoneiros, lobeiras e folhas de assa-peixe se alastrando por tudo. Desconfio até que estejam abandonadas. As invenções de agora se fazem em outros cenários, outras plataformas, principalmente as digitais. As cercas de arame farpado e muros de placa ou de tijolo não contam. Porque criança não respeita tais obstáculos.
E esses obstáculos eram pulados para que as matas fossem desbravadas. Éramos bandeirantes que buscavam ouro o mais fino, diamante o mais precioso e inalienável. Procurávamos o devaneio sem o qual não sobrevivemos na vida. Nos barrancos de nossa meninice, tudo era possível. Até mesmo o desmundo.
Espadas eram tantas. Cabos feitos de sabugo de milho. Grão já maduro, debulhado e servido a galinhas, pombos e humanos esfaimados de vida, alegria e gula. O sabugo ficava para restolho a gado e para brinquedos infantis. Os cabos assim, de sabugo, serviam de base onde se espetavam barrinhas finas de ferro. Eram varinhas que sobravam do mundo adulto, principalmente nas construções civis onde os pedreiros desprezavam os restos da ferragem usada para a estrutura das lajes.
Eram tantas as espadas quantos fossem os heróis que pudessem manuseá-las. Éramos cavaleiros indomáveis em cavalos imaginários.
Cavalos não existiam mesmo. Só os de verdade, mas dos adultos. A imaginação dessa forma os criava e os fazia galoparem pelo Grand Canyon de nosso bairro, nos fundos de nossas hortas, lá onde podíamos sonhar e campear. As façanhas se realizavam no pasto do Chicão ou no barranco do outro lado da rua, mais para os fundos nos pastos do Lalado. Nossos ginetes eram invisíveis. E eram lindos em suas formas, crinas levantadas ao vento, patas coriscando o chão sob o rumor que as folhas dos bambuzais faziam no topo de um barranco. E as folhas de bambu farfalhavam. Os caules lenhosos e flexíveis balançavam e se roçavam. Rangiam para nos dar medo. Alguns dos meninos até tremiam, já outros não. Aquelas vozes vegetais eram nossas companheiras, davam mais realismo a nossas peripécias.
E em nossas aventuras éramos venturosos. Heróis inabaláveis em suas vontades de viver. Lutávamos com vontade, cada um defendendo seu território contra as hordas inimigas. As nossas guerras eram pura vida, sem feridos e mortes. E golpes de espada atravessavam o ar, batiam-se contra as paredes das ribanceiras e voltavam num eco destemido para os nossos ouvidos. Era poeira fazendo densa cortina sobre os nossos medos encenados naqueles palcos. Era tudo poeira e suor, o que depois demandaria banho mais cuidadoso em casa. Isso para xingamentos das mães, para reclamações dos pais. As contas de luz e água reverberariam mais depois essas bravuras de amor.
E o amor era tanto, que os nossos pais aceitavam, no final das contas, energias tamanhas se desdobrando nos grandes espaços. E o céu sem fim, com seu azul profundo ou seu ar espesso de nuvens cinzentas, abraçava a todos os guris e gurias que corríamos pelos campos, pela poeira da vida vivida e nunca esquecida.


© Evaldo Balbino 2017

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