Verso do poema "(Des)motivo" - do livro "Moinho" - 1ª edição 2006; 2ª edição 2021

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

As mãos persistentes do equilibrista



Evaldo Balbino


Isto aqui não é um lamento. É o vagar de um corpo sobre precipícios em cujas beiras existem flores, algumas pedras que são duras e que por isso mesmo servem de apoio para pés e mãos que tentam viver. Tentam viver como se estivessem levitando. Viver da palavra, não no sentido monetário da sobrevivência, mas no sentido da vida de que se precisa, do ar que se respira.
E meu corpo passeia nuvens, se equilibra num mundo onde tudo é tão múltiplo, onde há tanto ruído e onde é tão difícil sentir o silêncio do que realmente fala. Existem muitos barulhos, bocas falam, olhos e braços gesticulam. As pessoas, no entanto, não se comunicam.
Olho para o vácuo sob meus pés e não vejo chão que me sustente, segurança que me apoie. Vejo um escuro descendo, cada vez mais. Mas insisto! Vejo nas beiradas desse escuro denso e profundo, vejo bem ali nas laterais as flores crescendo forte, as ramas rompendo a secura das rochas, os ninhos de algumas aves que vivem porque a vida é bela e urgente. Vejo pedras, cascalhos plantados nas ribanceiras e servindo de apoio para meus pés e mãos.
Logo eu que não sei fazer rapel, que não escalo montanhas, que tenho medo de alturas e patamares terríveis! Logo eu que não tenho asas, que não sou pássaro nem máquina voadora! Mesmo assim estou aqui, levitando sobre um escuro indiferente ao meu desejo de luz.
Sou aquele que vigia, que observa. Sou sentinela. Me sinto um lugar elevado de onde se observa ou se vigia. Sou mesmo este lugar.
E com meu corpo solto pelo espaço, vou atravessando os ruídos que pouco ou nada comunicam, vou tentando falar no meio de gritos, de burburinhos, de sons tantos e tontos. Sons tão pouco amáveis.
Eu vou escrevendo. Escrever é andar nesta corda bamba. Escrever, no meu caso, é insistir na grafia poética e humana das letras, mesmo que inexatos sejam os modos de lançar essas letras para o ar. Sim, sou desengonçado, um mero corpo humano tentando salvar a si e aos outros em sua inteireza. Corpos que são matéria, mas que também são alma.
As palavras, lanço-as como sementes aéreas. São tantos os pássaros, mas quase todos têm pressa de voar, de debandar, de chegar a algum destino. E quase todos não se dão conta de que não há destino algum a não ser em nós mesmos. Em nós mesmos nos olhando, nos amando, nos falando e olhando nos olhos uns dos outros, com vagar, com contemplação. Contemplar está ficando cada vez mais difícil. O mundo tem pressa e por isso mesmo despreza (sem perceber) as sementes que lhe chegam. Na velocidade da vida, nós nos perdemos.
E eu vou escrevendo, lançando essas sementes que se lançam contra muros e que desejam penetrar-lhes as entranhas impenetráveis. Um desejo de que a poesia seja entranhável me toma. As sementes precisam abrolhar amores. Vou escrevendo, apesar dos ruídos, das pressas, das vidas presas em utilidades ilusórias. Vou lançando sementes, não obstante as debandadas dos pássaros. E amo esses passarinhos! Do mesmo jeito amo as sementes que são crias deles. As palavras são ovo e promessa que engendramos num desejo de compreender e de sentir a vida.
Vou escrevendo, vou prosseguindo nesta corda bamba. Sou um equilibrista. O escuro é surdo, muitas vezes. Mas quem sabe um dia ele me ouvirá. Lanço-lhe sementes, e dele haverá de brotarem um dia flores verdes, alegrias tantas, almas plenas e dóceis para aquilo que é luz em nós. Ficarão dispostas, estas almas, a se deslumbrarem com tanta luz. Luz que ilumina com beleza a vida.
Vou escrevendo num mundo belo e sofrido, vendo pelas frestas das palavras os corações que batem. E com isso dou ao mundo o meu ato de coragem. Porque escrever é ter coragem de me manter como um dos atalaias da alma. Da minha, da nossa alma. Eu me sonho, escrevendo, um guardador de letras, esses rebanhos que nos apascentam, que nos mandam para um campo vasto e cheio de espinhos, mas cheio também de caminhos para as trilhas vitais.
Não é fácil persistir num mundo em que a literatura é só ornamento, avenca sem função nenhuma numa parede. E quanta função tem uma avenca, meu Deus! Com suas folhas frágeis, ela enfeita o meu dia e a minha noite. Enfeita o meu ato de olhar. E incide sobre o que olho uma outra possibilidade, uma inquieta luz.
Mas estamos na vida é para persistir, não é mesmo?! Devemos persistir no que amamos!!

© Evaldo Balbino 2017

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