By Elimar do Carmo
Evaldo Balbino
Lino sobe com a mãe pela cidade. Vão
buscar o pente de tear que dona Lucília fez. E o menino vai feliz. Quer ajudar
no carregamento daquela peça cheia de palitinhos de bambu fincados ao longo de
duas réguas paralelas de madeira. Entre os palitinhos passam fios que se cruzam
com tiras de retalho e fazem nascer tecidos, quenturas para os frios das
pessoas e beleza para todas as vidas carentes de beleza. Não querendo deixar o
garoto sozinho em casa, a mãe o leva consigo, protetora.
Depois do Largo do Rosário com suas majestosas
árvores, os dois passam defronte da delegacia de polícia. E o medo de sempre da
cadeia, palavra forte e opressora. Dizem que somente as pessoas más é que vão parar
ali, mas o vislumbre de se prender alguém como se prende na gaiola um pássaro
deixa ressabiado o menino. Asas são para voos; corpos pedem passagem para a
liberdade da vida. E uma cadeia prende essa liberdade, ata-a com nó desumano,
rijo, apertado e impiedoso.
Ambos caminham agora pela avenida central,
e a porta austera dando entrada sombria para um corredor que leva ao
consultório odontológico do Antônio Resende. As paredes caiadas de branco, um
cheiro de flúor que atravessa as narinas, os poros da pele, os medos das
pessoas diante do barulho de um aparelho polindo dentes ou do bisturi rasgando
a gengiva, buscando pela dor a saúde de uma boca ávida de vida. No centro de
tudo uma cadeira grande, reclinável, onde se pode, mesmo sofrendo, sonhar com
um sorriso mais limpo, uma vontade de beijo e falas longas e claras, sem peia
nenhuma.
Mais adiante, depois da Limpadeira do
Vantuir, o encontro. A mãe para com uma pessoa e entabulam uma conversa. É o
monsenhor Nélson. Amenidades se trocam sobre a tarde que se estende num vento
lerdo e calmo, sobre pessoas que faleceram recentemente, sobre a vida mesma ao
rés-do-chão. Comentam até sobre os dias longos que se tecem, mas que mesmo
assim são curtos para tanta coisa a se fazer.
O garoto fica olhando intrigado para o
padre, esperando da mãe uma explicação do que ele não entende. Como os dois
adultos continuam conversando num esquecimento da existência dele, seu corpo
infantil, então, resolve alardear sua presença. E entra na conversa alheia,
fazendo-se comparte daquele encontro, querendo indagar sobre coisa muito
importante. E comenta sem receios: “Mãe, nunca vi mulher de cabelo raspado e
com voz de homem!!”.
A genitora sofre de vergonha. O rosto
queima e não titubeia na decisão de ralhar com o filho. Vai logo chamando atenção
de sua cria. Sem violência, sem agressão física. Mas com autoridade.
O monsenhor, amável, lento, paciente.
Sorri para o garoto, afaga-lhe a cabeça indomável e lhe sorri também com as
mãos. Em seguida diz à mãe que ela precisa ter mais atenção com a vida
religiosa da família, levar mais os filhos à igreja.
A mulher pede desculpas e concorda com as
palavras conselheiras. O padre avança em sua caminhada, sem saber que a mãe
leva o menino sim, e muito, para a igreja. Contudo não é um templo com homens
vestindo batinas ou batas. O que o garoto sempre vê são homens de terno e
gravata, faça sol ou chuva. Um terno de fazer suar um pobre corpo no calor dos
trópicos.
Então a mãe continua com seu filho na direção
da Praça Professora Rosa Soares Penido. Vão para o Canela, lá onde mora dona
Lucília, a fabricadora de pentes de tear. E vai explicando ao garoto quem é
aquele homem, fala da sua importância para a cidade e para os fiéis que ele
pastoreia. E diz também do uso da batina, do que representa toda aquela
compostura de um homem que fala em nome de Deus. “Mas ele também sua, mãe?” –
interroga o garoto, querendo saber e se mostrando importante por não ter dito
“soa” como muitas vezes dissera e sofrera risos de pessoas que se achavam mais
sabidas do que ele.
A mulher não entende o porquê da pergunta
e o questiona sobre ela. “Aquela batina parece ser quente”, responde o filho.
Rindo bem alto, com vontade mesmo, a mãe diz que sim, que o padre sua, é ser
humano como todo mundo.
Numa
careta, então, Lino reafirma sua ideia de ser aquilo tudo muito chato. Pra que
terno e gravata, pra que batina e sapatos duros e fechados num mundo onde o Sol
derrete seu fogo sobre as pessoas? Isso não é certo. Isso também é cadeia, é
prender as pessoas numas grades duras, de ferro. Pensa essas coisas, porém não
diz mais nada. Só vai pensando rua abaixo até o Canela. Pensando um pensamento
longo, largo como os fios da vida.
© Evaldo Balbino 2017
Que texto gostoso de se ler. A gente vai andando junto com ele. Obrigada Evaldo por nos presentear com esse dom maravilhoso de escrever!!!
ResponderExcluirRenata, que bom que você "andou" com o menino na leitura do texto. Essas andanças nos fazem bem, nos dão chão, nos fazem ter um reencontro com nós mesmos. Um grande abraço!!!
ResponderExcluirNum mundo tão caótico, confuso, ler algo assim só nos faz bem! Prosa em forma de poesia sem derramamento exagerado de sentimentalismo. Tudo na dose certa. Parabéns escritor.
ResponderExcluirPrezado Geraldo Maia, muito obrigado. O bom texto literário, de fato, recria a vida com contenções. Há sentimentos, sim, mas, como você disse, tudo vem dosado pela poesia da linguagem, pelo trabalho com as palavras. Um grande abraço.
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