Evaldo Balbino
Certo dia a irmã de Lino passou uma
tarde inteira na casinha das amigas Lu e Tila. As duas irmãs a tinham convidado
para brincarem de comadres lá no fundo da horta com a permissão dos pais.
Depois de costurar e bordar com as colegas,
sua irmã chegou na boca da noite com um presente feito por elas, o qual lhe
fora oferecido de bom grado.
– É feia de doer, parece até uma bruxa a
coitada! – maldisse a irmã de Lino.
Cabeça quadrada. Cabelo não tinha
nenhum: só um pano preto envolvendo o crânio. Olhos, nariz e boca mal traçados
com costura de agulha hesitante e linha preta. O pescoço e o corpo eram um
toquinho de panos envoltos por uma fazenda maior e bem costurada. Braços e
pernas, idem, só que em toquinhos menores. As pernas, é claro, mais compridas
que os braços. O vestidinho que usava a boneca era bonito, de chita, numa
costura também acriançada. Assim um pouco torta, a bonequinha era linda aos
olhos de Lino. O vestido dava vida àquela “bruxinha”, assim nomeada pela irmã.
Um vestido ramado, com flores vermelhas e amarelas num fundo verde-claro.
A menina luxenta, desdenhando a
bonequinha, atirou-a sobre o banco de madeira da sala, dizendo que iria jogá-la
no lixo depois.
Então o menino se apaixonou pela
rejeitada. “Que bruxa que nada!”, pensou consigo. Pediu a boneca para si com a
maior naturalidade do mundo. A irmã fez um muxoxo e deu de ombros:
– Se quiser, pega! Nunca vi menino brincar
de boneca, mas pode pegar.
Lino não se importou com as palavras da
irmã. Ora essa! Não tinha nada disso não. Estava amando a boneca e pronto. Não
via problema nisso não.
Pegou a boneca e abraçou-a com aperto
carinhoso. Não lhe daria nenhum banho, não por enquanto, que ela estava novinha
ainda, acabada de ser feita. Se lhe cuidasse bem, se não a deixasse no chão
sujo de terra, se não a expusesse ao Sol que castiga, não teria que banhá-la
tão cedo.
Levou-a para seu quarto, e lá a deixou
dormindo tranquila sobre a cama, bem ao lado do travesseiro. E já ansiava a
hora em que dormiria ao lado dela, abraçados os dois. Ele sendo o pai de um
serzinho tão pequeno e indefeso.
Saiu para correr com os amigos na rua.
Jogou uma pelada, pegou bandeira e depois ainda brincou de esconde-esconde. O tempo
todo, porém, brincando lá com os amigos, foi sentindo uma ansiedade, uma espera
danada. Uma vontade louca de chegar em casa, tomar um banho, tomar um café com
leite bem gordo e se deitar ao lado da bonequinha, dar-lhe carinho
desmesuradamente. Um instinto profundo foi tomando conta de seus pensamentos,
cada vez mais. Um desejo de ser pai do serzinho desengonçado, não aceito pela
irmã.
Tudo, porém, ficou só na vontade.No mais
depois da noite, já em casa e de banho tomado, o menino se preparava para dormir,
quando o pai chegou de fazer serão no trabalho.
O homem entrou no quarto do garoto dando
um ufa de cansaço pelo longo dia, e seus olhos viram a boneca sobre a cama do
filho. Indagou que coisa era aquela ao lado do travesseiro.
Lino ficou quieto, temeroso da
tradicional braveza do pai. Uma braveza que lhe tirava a espontaneidade, a possibilidade
de viver sem receios. Uma braveza amorosa, mas cheia de espinhos
desnecessários. Diante do silêncio do filho, outra vez a pergunta. E mais uma
vez o silêncio do garoto.
Antes que o pior acontecesse, a mãe veio
imediatamente ao socorro do filho. Foi logo entrando no quarto e informando ao
marido do que se tratava. Disse sem medir palavras, pronta já para enfrentar as
manias do esposo. Ele não pestanejou um segundo sequer. Seus olhos relampejaram
sobre o filho, reprovadores, e suas mãos, sem esperar alguma reação da esposa, pegaram
a bruxinha sem se importarem com o choro do menino. Porque este já chorava, e
não pouco. Com passadas bravas, o pai foi até a privada seca, lá no fundo da
horta, e jogou o brinquedo na fossa.
Lino continuou
chorando em seu quarto, só que agora em silêncio. Engoliu pouco a pouco as
lágrimas antes que o pai viesse lhe exigir contenção. E foi dormir sozinho. Nem
tinha jeito de fazer uma sepultura para sua filha, que sobre a fossa da privada
isso não seria possível. Entre as fezes humanas, ficaram enterrados sua filha e
o seu desejo de ser pai.
© 2017 Evaldo Balbino
Ao desenrolar da narrativa, o coração do leitor vai se apertando, pois ele prevê o terrível desfecho...
ResponderExcluirQuerida Evi, obrigado pela leitura. Um enredo deve também fazer isto: ir levando o leitor pouco a pouco para um desfecho. Para isso, os laços da escrita vão abraçando os olhos de quem lê, para que eles possam encarar as verdades de nossas vidas.
ResponderExcluirA tradição ainda dita tanto quanto o senso comum. quem diz que menino não pode brincar de boneca e menina de bola ou carrinho? Terá sido os precursores da Revolução industrial?
ResponderExcluirDe fato isso vem bem de antes, meu caro. Remontam a muito antes as tradições que nos enformaram. Mas podemos desconstruir os discursos e, com novas palavras, promover novas vidas, novos valores.
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