Verso do poema "(Des)motivo" - do livro "Moinho" - 1ª edição 2006; 2ª edição 2021

terça-feira, 18 de abril de 2017

Menino também brinca de boneca

Evaldo Balbino






Certo dia a irmã de Lino passou uma tarde inteira na casinha das amigas Lu e Tila. As duas irmãs a tinham convidado para brincarem de comadres lá no fundo da horta com a permissão dos pais.

Depois de costurar e bordar com as colegas, sua irmã chegou na boca da noite com um presente feito por elas, o qual lhe fora oferecido de bom grado.

– É feia de doer, parece até uma bruxa a coitada! – maldisse a irmã de Lino.

Cabeça quadrada. Cabelo não tinha nenhum: só um pano preto envolvendo o crânio. Olhos, nariz e boca mal traçados com costura de agulha hesitante e linha preta. O pescoço e o corpo eram um toquinho de panos envoltos por uma fazenda maior e bem costurada. Braços e pernas, idem, só que em toquinhos menores. As pernas, é claro, mais compridas que os braços. O vestidinho que usava a boneca era bonito, de chita, numa costura também acriançada. Assim um pouco torta, a bonequinha era linda aos olhos de Lino. O vestido dava vida àquela “bruxinha”, assim nomeada pela irmã. Um vestido ramado, com flores vermelhas e amarelas num fundo verde-claro.

A menina luxenta, desdenhando a bonequinha, atirou-a sobre o banco de madeira da sala, dizendo que iria jogá-la no lixo depois.

Então o menino se apaixonou pela rejeitada. “Que bruxa que nada!”, pensou consigo. Pediu a boneca para si com a maior naturalidade do mundo. A irmã fez um muxoxo e deu de ombros:

– Se quiser, pega! Nunca vi menino brincar de boneca, mas pode pegar.

Lino não se importou com as palavras da irmã. Ora essa! Não tinha nada disso não. Estava amando a boneca e pronto. Não via problema nisso não.

Pegou a boneca e abraçou-a com aperto carinhoso. Não lhe daria nenhum banho, não por enquanto, que ela estava novinha ainda, acabada de ser feita. Se lhe cuidasse bem, se não a deixasse no chão sujo de terra, se não a expusesse ao Sol que castiga, não teria que banhá-la tão cedo.

Levou-a para seu quarto, e lá a deixou dormindo tranquila sobre a cama, bem ao lado do travesseiro. E já ansiava a hora em que dormiria ao lado dela, abraçados os dois. Ele sendo o pai de um serzinho tão pequeno e indefeso.

Saiu para correr com os amigos na rua. Jogou uma pelada, pegou bandeira e depois ainda brincou de esconde-esconde. O tempo todo, porém, brincando lá com os amigos, foi sentindo uma ansiedade, uma espera danada. Uma vontade louca de chegar em casa, tomar um banho, tomar um café com leite bem gordo e se deitar ao lado da bonequinha, dar-lhe carinho desmesuradamente. Um instinto profundo foi tomando conta de seus pensamentos, cada vez mais. Um desejo de ser pai do serzinho desengonçado, não aceito pela irmã.

Tudo, porém, ficou só na vontade.No mais depois da noite, já em casa e de banho tomado, o menino se preparava para dormir, quando o pai chegou de fazer serão no trabalho.

O homem entrou no quarto do garoto dando um ufa de cansaço pelo longo dia, e seus olhos viram a boneca sobre a cama do filho. Indagou que coisa era aquela ao lado do travesseiro.

Lino ficou quieto, temeroso da tradicional braveza do pai. Uma braveza que lhe tirava a espontaneidade, a possibilidade de viver sem receios. Uma braveza amorosa, mas cheia de espinhos desnecessários. Diante do silêncio do filho, outra vez a pergunta. E mais uma vez o silêncio do garoto.

Antes que o pior acontecesse, a mãe veio imediatamente ao socorro do filho. Foi logo entrando no quarto e informando ao marido do que se tratava. Disse sem medir palavras, pronta já para enfrentar as manias do esposo. Ele não pestanejou um segundo sequer. Seus olhos relampejaram sobre o filho, reprovadores, e suas mãos, sem esperar alguma reação da esposa, pegaram a bruxinha sem se importarem com o choro do menino. Porque este já chorava, e não pouco. Com passadas bravas, o pai foi até a privada seca, lá no fundo da horta, e jogou o brinquedo na fossa. 
Lino continuou chorando em seu quarto, só que agora em silêncio. Engoliu pouco a pouco as lágrimas antes que o pai viesse lhe exigir contenção. E foi dormir sozinho. Nem tinha jeito de fazer uma sepultura para sua filha, que sobre a fossa da privada isso não seria possível. Entre as fezes humanas, ficaram enterrados sua filha e o seu desejo de ser pai.


© 2017 Evaldo Balbino

4 comentários:

  1. Ao desenrolar da narrativa, o coração do leitor vai se apertando, pois ele prevê o terrível desfecho...

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  2. Querida Evi, obrigado pela leitura. Um enredo deve também fazer isto: ir levando o leitor pouco a pouco para um desfecho. Para isso, os laços da escrita vão abraçando os olhos de quem lê, para que eles possam encarar as verdades de nossas vidas.

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  3. A tradição ainda dita tanto quanto o senso comum. quem diz que menino não pode brincar de boneca e menina de bola ou carrinho? Terá sido os precursores da Revolução industrial?

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    1. De fato isso vem bem de antes, meu caro. Remontam a muito antes as tradições que nos enformaram. Mas podemos desconstruir os discursos e, com novas palavras, promover novas vidas, novos valores.

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