Anunciação era professora, diretora, inspetora, delegada, juíza,
promotora... O que ela quisesse ser.
Regina Coelho[1]
Usava
blusa ou vestido com mangas compridas ou curtas. Sua roupa compunha-se com sandálias
de abotoar nos pés. Gostava também de salto, mas era um tamanquinho bem leve.
No pescoço levava quase sempre um colar, que mais parecia um terço. Com lenço
na cabeça, sombrinha a tiracolo (fazendo sol ou chuva), ela usava óculos
grandes, professorais. E seus gestos diziam de sua sabedoria, das posições
sociais que ocupava no tocante ao Ensino.
Não
estou certo se Maria Anunciação de Jesus tinha leitura. Mas com os grandes óculos
postados e os olhos firmes (em jornais, revistas, livros e papéis avulsos ou acondicionados
em pastas), ela se concentrava. Seus dedos ágeis tocavam as letras. E a mulher
lia: não sei se o que estava realmente impresso ou se palavras outras que sua
mente garatujava.
O seu
dedo anular não andava desnudo por Resende Costa. E o anel que levava tinha
brasão. Não do sangue nobre que passa de pai para filho, mas de uma formatura a
que ela acedera, conforme seu testemunho, depois de muito estudar.
Com
o anel de formatura marcando presença, suas mãos seguravam papéis e pastas.
Muitas vezes eram jornais mais que dormidos, com notícias do mundo já passadas.
A tudo ela segurava junto ao peito. A mão direita firmando o saber no lado
esquerdo do tórax, bem rente ao coração.
O
seu nome era ignorado por muitas pessoas. Por várias outras, não. Mesmo assim, entre
todos sempre havia bocas sem controle, um sadismo sem peia. E apelidavam-na de
Ponte Preta, Maria Fumaça e outras alcunhas afins. O apodo que lhe ficou mesmo,
o que angariou fama na pequena cidade, foi o de Maria Fumaça.
Incomodavam-na
as brincadeiras de mau gosto. Tanto que bradava com os provocadores. Não
obstante o incômodo, ela, paradoxalmente, demandava tais provocações, chegando
mesmo a não admitir que não percebessem sua presença quando passava, por
exemplo, perto de crianças desordeiras. No fundo, adorava quando mexiam com
ela. Os seus divertimentos eram dois: o de fazer-se “professora, diretora,
inspetora, delegada, juíza, promotora... O que ela quisesse ser” e o de ser a
atenção do sadismo de muitas pessoas, aquelas cujas línguas se julgavam
inofensivas em suas brincadeiras.
Em
1992, Maria Anunciação de Jesus passou a viver no Lar São Camilo. Com a idade
já bem avançada, pôde encontrar ali os cuidados necessários que a passagem do
tempo demanda de todos nós.
Nessa
casa de idosos, minha mãe foi conversar com ela certo dia e lhe perguntou se
estava tudo bem. “Ah, tô, minha fia! Tô sim.” E em seguida, corrigindo-se no
português: “Só que estou afastada do
Assis Resende [Escola]. Tanto que fazer parado! Os alunos e professores sem
inspeção! Só Deus para tomar conta, né?!”
Estive
com ela, também no Lar São Camilo, no segundo semestre de 2016. Fui lá com
minha irmã e sobrinhas para fazermos com os idosos uma pequena festa. Levamos
guloseimas, com o devido cuidado de pensar nos casos que demandavam dietas específicas.
A confraternização foi boa, deveras. Até encontrei uma simpática senhora que
grudou em mim, me abraçando e me beijando a torto e a direito, dizendo que eu
era o seu noivo. E que depois ainda ficou lamentando por ter um nubente tão
desleixado que não quis lhe beijar a boca. Vejam só! Mulher tão alegre, de vida
tão esfuziante, e com energia para dar e vender!
Em
certo momento, numa fuga da “minha noiva”, fui ao quarto de dona Anunciação.
Ela já estava impossibilitada de se levantar e, portanto, não fora ter conosco
no simples festejo. Com olhos esbranquiçados, já não enxergava mais. Não por
praxe, mas por um amor espontâneo, indaguei-lhe como estava. Me disse que não se
encontrava bem e me pediu que rogasse a Deus para que ela pudesse ter o
necessário e final descanso.
Meses depois ela fechou os olhos já cansados de tanta
vida. Nos deixou no dia 20 de janeiro de 2017. Se esperasse por mais uns 65
dias, teria entrado na vida eterna na mesma data em que, pela tradição
católica, o arcanjo anunciou à Virgem o advento do Cristo. Isso, porém, não
importa. Sendo o calendário criação humana, qualquer dia é dia de nascer. E
Maria Anunciação anunciou-se às portas do Céu. Agora sem cegueira, sem pernas
fracas, mas ainda com seus óculos professorais e eternos.
[1] Do artigo
“Tempos de Anunciação” – Jornal das Lajes,
16 de fevereiro de 2017. Disponível em https://www.jornaldaslajes.com.br/colunas/contemplando-as-palavras/tempos-de-anunciacao/1001.
Texto excelente!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirQue crônica linda! Embora não tenha conhecido dona Anunciação,pelo carinho em que ela é retratada aqui, imagino o quanto era divertida. Me alegro também, quando tenho a oportunidade de ver que, nesse momento em que nós temos nos mostrado tão individualistas e egocêntricos, ainda existem pessoas que se sensibilizam e se importam de verdade com o bem estar do outro, quando este não é um amigo próximo ou algum parente. Ainda mais quando se trata de alguém que vive às margens da sociedade, que passam pela grande maioria, despercebidos. Como ela, existem tantos outros, a quem não damos a devida importância. Além do mais, são poucos os que conhecem as realidades dos asilos e dos "inativos" ali, muitas vezes abandonados pelas famílias. Parabéns pela iniciativa e pelo texto; por nos dar a oportunidade de conhecer um pouquinho de Anunciação que, com certeza, ficaria imensamente feliz com essa homenagem. Acredito que ela marcou de forma única a vida daqueles que a conheceram de verdade, e que através dessa crônica, teve sua personalidade e jeito simples de viver, tão cativantes, eternizados
ResponderExcluirAh que vontade de ter conhecido "Maria Fumaça"!
ResponderExcluirÓtimo texto.
ResponderExcluir