Evaldo Balbino
Untitled (Undated) - by José de Almada Negreiros (1893-1970) - Calouste Gulbenkian Museum, Modern Collection, Lisbon, Portugal - Material: Oil on card Collection: Private collection on deposit at Calouste Gulbenkian Museum - Foto de Pedro Ribeiro Simões, 2017
Cozinhava grelos de chuchu com ovos
como quem passa as mãos pelos cabelos num ato de vaidade. Vaidade simples, pura
e necessária. Necessidade advinda da beleza dos cabelos brancos esvoaçando-se
ante os olhos, demandando uma contenção atrás de orelhas antigas e sabidas.
Pureza e simplicidade existentes nos modos de ser tão singelos, como eram os
dedos das mãos de minha mãe.
Muitas vezes vinham machucadas suas
mãos por haverem cortado samambaia, muchoco e serratucano nos brejos e nas
margens dos cor’gos da região. Vinham machucadas e felizes, pois operariam a
mágica de uma culinária inimitável: comeríamos todos, debaixo das asas de uma
galinha protetora, aquele guisado que ela sempre improvisava com maestria.
Pedaços de ovos, pimenta, talos de couve, cebolinha e salsinha – tudo era
bem-vindo nos banquetes de nossas bocas.
Limpavam frangos aos domingos,
naqueles domingos em que nos permitíamos certas regalias à mesa. Limpavam
frangos as suas mãos; e faziam questão de preparar os vinte e um pedaços,
contanto com os pés e a cabeça, para que toda a família fosse alimentada.
Éramos dez. Mais ou menos dois pedaços para cada um. O pescoço era dela, pois
fazia questão de degustá-lo. Eu insistia em dar-lhe os meus pedaços, pois meu
estômago era fraco para carnes. Então, com carinho e esmero, suas mãos fritavam
dois ovos para o filho caçula tão frágil.
Houve tempos duradouros em que suas
unhas reclamavam de um sabão agressivo. Unheiros flagelando mãos tão hábeis. Um
pus de pura luta entre tecidos e vida. O Sabão do Reino que usava corroía a
sujeira de roupas suadas. Roupas que ela molhava, esfregava, batia na pedra,
quarava, enxaguava (uma, duas, três vezes), para depois secá-las ao sol.
Expô-las como se expõe um troféu após uma batalha inexorável. Nesta faina sem
fim, as unhas de minha mãe lamentavam.
Sempre curtas, como ainda o são.
Sempre curtas, o que era de uma beleza indizível. Uma vaidade feminina
discreta, rude, pouco encontrada em muitas mulheres. E não eram machas, as
unhas de minha mãe. Eram femininas nas pontas de dedos tão ásperos. Parecia não
crescerem nunca. Discretas, sempre limpas por água e sabão, foram elas um dia
salvas por uma dessas receitas de ervas e pela vontade de Deus, pela sempre
vontade de Deus como ela fazia e faz questão de dizer-nos e de propagar aos
incrédulos.
Suas mãos me contavam histórias. Eu
as lia como se fosse um cigano. Não eram futuros o que me diziam as duas
palmas. Eram imperiais caminhos já traçados nas estradas de terra do Ribeirão
de Santo Antônio e depois numa Resende Costa bem pequena, numa casa erguida com
tijolos e sonhos, numa rua da periferia, de terra vermelha e infância.
Minha mãe na roça, entre milhos,
abóboras, palhas de feijão e canções: “Ai menina, meu amor! / Minha flor no
cafezal...”. Seus lábios sem batom me cantavam música tão sublime como se
estivessem entoando hinos de louvores a Deus. E entoavam! Seus lábios cantavam
como cantam os lábios de mulher da roça e não de uma sereia devoradora.
Cantavam estendidas canções como os fios estendidos de Ariadne a guiar Teseu
pelo labirinto de Creta. Os lábios a conduzir-me pelos labirintos. Aqueles nos
quais nos perdemos todos.
Minha mãe cantava, como ainda canta
e sempre cantará. Mulher do povo, daquelas que se dão ao luxo de às vezes
comerem com as mãos na cumbuca, no coité trazido pelos seus homens de grotas da
redondeza. Mulher do povo a brigar com o seu homem quando uma necessidade
insiste, quando o machismo excede. Daquelas que diziam e dizem ao marido: “Eu
gosto de você e sei que você gosta de mim. Gosto de você, apesar de tudo. Eu
gosto e sei que insisto, quando muitas vezes deveria deixar essa vida ao seu
lado. Mas o que fazer? O que fazer se gosto de você e se tenho filhos que nos
amam?”.
Parecendo antiga, minha mãe era
moderna. Dominando e fingindo ser dominada, suas mãos tinham um poder de
glória. De domar o marido com carícias e brados. De fazê-lo retroceder nas
investidas impensadas nas coisas da vida. Amando meu pai com suas mãos
sofridas, ela calava o homem nas horas nuas da existência.
Oh, meu Deus, por que o passado
insiste? Ainda bem que este passado permanece! Viva, minha mãe ainda canta.
Suas mãos teciam colchas e cosiam nossas calças e
camisas. Os dedos ágeis entre agulha e linha não permitiam que ficássemos
desnudos, que ficássemos à mercê do frio que atravessava e ainda atravessa as
pedras de Resende Costa, principalmente no mês de julho. O que suas mãos
costuravam eram as nossas vidas. Remendavam o que ameaçava romper-se.
Seguravam-nos, como Deus segura a Terra no espaço.
(BALBINO, EVALDO. Móbiles
de areia. Resende Costa – MG: Amirco, 2012. p. 71-73)
Maravilhoso!!!
ResponderExcluirMuito obrigado!!! Fico feliz que este texto lhe tenha dito algo. Um forte abraço!!!!
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