Verso do poema "(Des)motivo" - do livro "Moinho" - 1ª edição 2006; 2ª edição 2021

terça-feira, 21 de setembro de 2021

A mulher plural em "As mulheres em mim", de Terê Silva



Terê Silva pontua de imediato, no seu livro As mulheres em mim, a metamorfose como constitutiva do ser. No caso, do ser mulher. Já na 1ª orelha da brochura, comparece esta imagem: "Como borboletas multicores / Visitando as inúmeras flores / Em um imenso jardim / Assim são as minhas metamorfoses". No texto de apresentação da obra, Thayane Renata Silva Andrade nos diz que "Este livro não se destina somente às mulheres. Ao lerem os poemas que o compõem, os homens terão a oportunidade de conhecer um pouco mais sobre a essência feminina, muitas vezes consideradas [as mulheres] por eles como bastante complicadas" (p. 6). A mesma prefaciadora, na sequência, aponta o poema "Mulher Lua" como exemplo de "uma mulher em constante modificação" (p. 6). Ora, esse processo contínuo de modificações nega as essências. Mesmo que o sujeito poético de Terê Silva assuma às vezes a postura da essência, no todo o que ressalta em seu trabalho poético é a mutabilidade, ou seja, o reverso da concepção ontológica da existência.

Na "Dedicatória", surgem expressões que apontam para a ideia da pluralidade, da diversidade que compõe o ser feminino, tais como "representações daquelas que em mim se manifestam" e "a multiplicidade das mulheres que vivem em cada uma de nós". Assim, diferentes mulheres se mani-festam na poesia de Terê Silva. Pela manufatura da poesia, eis a festa das identidades: "Paradoxos se instauram em meu ser" (p. 52).

O livro divide-se em pequenas 19 partes, sendo que em cada uma comparecem predominantemente 02 poemas, cada qual representando, um em relação ao outro, o extremo oposto de uma representação. Assim a voz poética é atravessada por binarismos, por sentimentos, ações e posturas opostos em convivência: inspiração e poesia, aço e palha, guerra e paz, coragem e temor, fortaleza e fragilidade, suficiência e carência, doação e apego, tolerância e severidade, coerência e contradição, esperança e decepção, sucesso e fracasso, orgulho e humildade, ciúme e desprendimento, Sol e Lua, clamor e silêncio, leitura e escrita, infância/juventude e maturidade, sonho e realidade...

Na pluralidade feminina, a imagem "mulher de fases" se aproxima da Lua sem deixar de ser o Sol, e as metamorfoses se encadeiam: "As manifestações em mim se revelam / Inesperadamente / Constantemente / Nuances de diversas mulheres / Em uma só" (p. 11). O diverso na unidade, uma tensão que não se resolve e na qual tudo, ao fim e ao cabo, é aparência e não essência: "Estas mulheres [imperfeitas] se apresentam sempre / Retiram as máscaras da aparente perfeição" (p. 13). Em meio às contradições da vida, o que se tem é "uma luta constante / entre o que revelar e o que esconder" (p. 19). A despeito da multiplicidade, eis que surge o Sol abraçando a Lua, um encontro não a provocar eclipse e apagamento, mas a luminosidade da aproximação de contrários: "Entre o dia e a noite, / o sol abraça a lua / e se despede / até um novo amanhecer" (p. 73).

Reconhecendo os próprios defeitos e buscando a perfeição, a mulher "Vence suas batalhas interiores" (p. 27) e, num movimento para o exterior, sonha "com um mundo mais humano" (p. 28). Entre a coragem e o temor, a fortaleza e a fragilidade, vê-se um ser feminino forte em suas constantes quedas. E da constante carência, a busca de suficiência, pois, apesar da constatação de que "Sinto falta de um tempo não vivido" e de que "A carência afetiva me afeta" (p. 40), temos nessa poesia a mulher que persiste: "Refazendo-me para sempre me proteger" (p. 39). A imagem mais clara da carência sentida se mostra na flor murcha e seca, na ideia de abandono e solidão: "Flor murcha há muitos dias sem regar / Sensação de abandono e solidão" (p. 56). A persistência feminina se mostra neste trecho: "O sucesso não é / ausência de fracasso / e, sim, persistência diante da realidade" (p. 61).

O papel escritor da autora se mostra dividido entre o fazer poético como técnica e como inspiração, prevalecendo esta segunda postura no seu trabalho escritural. O sentimento fala mais alto, pois aí o sujeito feminino passa sua vida pelo coração e transforma "as palavras em poesia". Há busca de técnica sim, mas o sentimento é o guia, a condução da escritura: "Pela magia da inspiração / Que do nada surge / Repentinamente, invade o meu ser / E me faz escrever / E me faz viver" (p. 17). A escrita e a vida se constroem pelo poder da inspiração.

Num jogo entre as palavra "palha" e "aço", a poeta chega a "palhaço", para dizer das fraquezas como fraturas expostas, do caráter de aço na convivência eventual e social, da encenação na vida como encena um palhaço cujo sorriso pode esconder uma lágrima: "Sempre PalhAÇO / Na vida / Sempre PalhAÇO / Da vida" (p. 23). Num jogo sintático de repetição e na fusão de palavras, a caixa alta fica, toda e inteira, com a palavra AÇO, o que reforça, nessa mulher representada, a fortaleza cultivada ao longo da vida.

Nas representações das multifaces femininas, encontramos em Terê Silva a poética da busca do próprio eu. "Escondendo-me em mim mesma / Revelando-me a cada encontro / Comigo em meu silêncio / E com o outro" (p. 12). O silêncio é o estado rumoroso do ser, aquela duração da vida em que cada um se ouve, escuta a própria voz interior: "Crio um novo momento / um novo encontro comigo / no silêncio do meu silêncio" (p. 59). Eis a expressão máxima desse verdadeiro silêncio dentro de si mesmo!  Tão importante esse silêncio, no sentido aqui tomado, que ele acaba por ser o encontro do sujeito consigo mesmo: "o silêncio / é o meu encontro / comigo" (p. 77).

Na busca do autoconhecimento, surge o reconhecimento da própria pequenez diante da vida. E uma humildade franciscana embala os versos de Terê Silva, nos quais comparece a constatação de que há muito para se aprender, num eco da conhecida filosofia socrática: "Nada sou / Nada faço / Nada sei" (p. 68).

Na busca do eu, o encontro com o outro. O autoconhecimento caminha juntamente com o conhecimento do outro. As preocupações com a alteridade se fazem presentes nesse eu feminino multifacetado. Além do já mencionado sonho "com um mundo mais humano" (p. 28), a aceitação do outro leva à tolerância, apesar da severidade. Uma tolerância aprendida "a duras penas" (p. 47), porque a vida, a necessária sociabilidade, nos demanda tal comportamento. Se o silêncio, conforme já visto, é busca do eu, não deixa de ser também ponte com as outras pessoas: "Meu silêncio ecoa em muitos silêncios / Como o das pessoas que se calam / Como o das pessoas que falam sem serem ouvidas / Ou se mantêm mudas mesmo gritando" (p. 80). Tais versos comungam sentimentos de solidão, fazem do sujeito mais um entre tantos: todos nós dividindo uma existência solitária sim, mas também solidária. As vozes dos que não são ouvidos comparecem nos versos de Terê Silva.

Afinal, fazer poesia não é isto?! Tecendo a palavra poética, fazemos o movimento de nós mesmos para os outros, sempre via beleza. Escrita e leitura se encontram — são gestos de convergência, de partilha. A leitura "preguiçosa" e "aconchegante", a "leitura viagem", a "humorística" e a "descontraída" (p. 83) — ou até mesmo qualquer outro tipo de leitura —, todas essas formas de ler nascem de escrituras e são escrituras. No prazer do texto, para utilizarmos aqui uma expressão do crítico e escritor francês Roland Barthes, todo ato de ler é também de escrever. As palavras de Terê Silva "se abraçam umas às outras" para, juntas, estruturarem "uma nova mensagem" (p. 84), uma voz múltipla para o silêncio.


As mulheres em mim
Terê Silva
Editora Versejar
São Paulo
100 p.
2020

© Evaldo Balbino — 21 de setembro de 2021

Nossa cidade, nosso futuro: contação de história e conscientização em Éllen Santa Rosa


Minha cidade, meu futuro!, livro infantil de Éllen Santa Rosa com belas ilustrações de Dam d'Souza, é história contada com desenvoltura e de modo direto. De enredo simples, mas com profundidade de tema, pois discute questões socioambientais concernentes às cidades grandes.

Miguel é um garoto esperto, consciente sobre o mundo que habitamos. Saiu há pouco da roça para morar na cidade grande. Toda a narrativa se concentra num passeio dele com o avô — o primeiro que realiza, agora como morador da cidade, pois antes ele foi ali apenas visitante. E já é dito de cara ao leitor que o avô dizia ao neto que ali, na cidade grande, estaria o futuro do garoto.

Mas a cidade tem problemas causados pelos humanos: ônibus lotados, calor forte por causa da poluição, poucas árvores, ruídos excessivos, céu escondido pelos prédios altos, lixo espalhado, mosquitos atraídos pelo lixo.

Pequeno ainda, Miguel já aprendeu na escola rural coisas importantes. Uma delas é que o mundo precisa do nosso cuidado e que cuidar do mundo é também cuidar de nós. Assim ele fala ao avô quando ambos estão sentados no banco de uma praça e os olhos infantis estão vendo lixo esparramado atrás do banco: "— Então precisamos fazer alguma coisa agora, no presente, senão não teremos um bom futuro por aqui não..." (p. 12).

Depois desse episódio, o menino, instado pela voz do avô, começa a dar sugestões do que pode ser feito para serem melhoradas as condições ruins da cidade. Tudo questão de atitudes humanas mais adequadas. Empolgado com a própria fala, o garoto vai dizendo tudo mais alto e, com isso, vai chamando a atenção das pessoas que passam pelo lugar. Vão parando para escutá-lo.

Da fala infante, as atitudes de todos. As palavras do garoto mostram a importância da Educação, no espaço mesmo escolar, e de como as sementes plantadas pela Escola, quando bem semeadas, podem ser espalhadas alhures e render bons frutos. Mesmo que isso seja a longo prazo, não importa!

Destaque-se que a pequena história do passeio de Miguel com o avô não se prende apenas a aspectos negativos da cidade. Os montes que rodeiam a urbe, os parques tantos, as praças com brinquedos para as crianças — tudo isso compõe os elementos descritivos dados ao leitor.

Somam-se a essa positividade as ilustrações de Dam d'Souza. Reforçam elas a diversidade étnica dos moradores da cidade. Miguel e o avô são negros. Personagens figurantes pardas e brancas comparecem nas imagens. A graciosidade dos traços mostra casas e prédios, automóveis, casais dividindo a vida, o verde da natureza em meio à secura do concreto, uma senhora alimentando pombos na praça, uma personagem fazendo cooper nesse mesmo espaço, faces alegres por uma cidade melhor.

Deve-se realçar que, nas páginas 8 e 9, a cidade em sua secura urbana e o rosto em destaque e triste de Miguel (no lado esquerdo) contrastam com a imagem de dois pequenos vasos pendendo de um poste (no lado direito), como se fossem lampiões, cada um de um lado como que ligados por uma balança em equilíbrio. O verde com o verde, vida pura. E a explosão do verde, no campo imagético, se dá em duas páginas (p. 26-27) no final da história, quando se vê a cidade rodeada por montes e com casas entre fartos verdes.

Minha cidade, meu futuro! é história em que o verbal e as ilustrações se conjugam para dizer, com desenvoltura, sobre um possível mundo melhor para todos: a nossa cidade, o nosso futuro.

© Evaldo Balbino — 21 de setembro de 2021

domingo, 19 de setembro de 2021

A escritura amorosa e humana em "Mãe, a ti, nossos primeiros versos"



Nascido no Projeto Lecriar, do Colégio São Mateus em Montes Claros, Minas Gerais, o livro Mãe, a ti, nossos primeiros versos (Montes Claros-MG: Editora Gráfica Millennium, 2019. 76 p.) conta com prefácio assinado pela professora-pesquisadora e mestre em Literatura Brasileira, Noêmia Coutinho Pereira Lopes. Coordenado pela professora Joyce Aparecida Andrade Freitas e levado adiante pela professora Pollyanna Luiza Corrêa Ruas, o projeto busca despertar e consolidar nas crianças o amor pelas palavras, o que lhes garante o direito à literatura, nos termos de Antonio Candido.

A prefaciadora Noêmia abre o lindo livro com palavras de Mirna Pinsky em epígrafe, uma frase que nos diz exatamente das palavras fazendo pontes entre as pessoas, pois nossas palavras, as primeiras e pela vida afora, sempre bebem nas águas alheias ("O que veio primeiro foi o encantamento pelas palavras de outros."). Daí a importância da alfabetização e do letramento, pois, em contato com outras vozes, vamos erguendo as nossas próprias. E por que não fazer isso por meio da poesia? Afinal, o poetar nos habita a todos!

As organizadoras do livro, Joyce e Pollyanna, tecem uma apresentação para a brochura, e o fazem buscando em Paulo Freire a premência de que nós educadores temos consciência: é preciso que a leitura seja um ato de amor. E foi esse amor que levou as professoras Pollyanna, Joyce e Noêmia (respectivamente, ministradora das aulas, supervisora e orientadora) a estimularem os educandos a conhecer, aprender e vivenciar a escrita de poemas. Aqui a escrita surge como um processo de construção social e de emancipação do sujeito que, via linguagem, se constrói e erige seu lugar e sua expressão no mundo.

Os autores-mirins são vários, e variada é a produção que se nos oferece. Com o sempre amor no manuseio das palavras.

Convidados a caminharem pela estrada da leitura e da escrita, os alunos dos anos finais do Ensino Fundamental I (alunos do 4º e do 5º ano, cuja faixa etária, pois, gira em torno de 9 a 10 anos) aceitaram a poesia e se puseram nas trilhas das palavras, com versos rimados ou não, homenageando as mães. Fotos dos discentes alternam-se com os poemas. E estes, carregados de amor pelas mães, poetizam as relações e a vida.

Os versos são predominantemente curtos, em sua maioria perto das sete sílabas. É a presença da redondilha a mostrar a popularidade dessa dicção, duma oralidade tão cara em nossas vidas e com a qual as crianças convivem desde cedo. Daí a facilidade com que a garotada aprende facilmente os redondilhos.

Iniciando-se na escrita de metáforas, os autores-crianças já vão criando imagens para as mães representadas nos poemas. Assim ocorre em versos simples como estes, nos quais a alegria se associa à primavera por oposição à fera — e tudo isso é imagem da mãe:

Mãe é pura alegria!

É alegria todo dia.

Às vezes, é uma fera!

Em outras, primavera. ("Amor de mãe", p. 31)

Atrelando-se à alegria e à positividade do ser materno, surge a mãe-herói, amazona forte e protetora, o que na tradição — em termos de fortaleza — é atribuído frequentemente aos homens e não às mulheres:

Toda noite você me dá um beijo

e realiza o meu desejo.

Em meu sonho, ergue a espada.

Amazona mais amada. ("Mãe", p. 17)

O ser da mãe é associado, também em linguagem figurada, ao brilho. Metonimicamente, parte-se do sorriso da mãe para dela se falar, do brilho do sorriso, do brilho  da mulher-mãe. E a comparação com o diamante surge, vencendo na balança poética a existência materna:

Seu sorriso é tão brilhante;

vale mais que um diamante!

Seu amor é tão gigante,

bem melhor que um romance. ("Mãe", p. 17)

A imagem do brilho, da luz, comparece na ideia do parto, desse ato de dar à luz um ser infante. Mas aqui, nos poemas de Mãe, a ti, nossos primeiros versos, as crianças têm voz, voz poetizada, e não são de modo algum in-fantes (sem fala). O escrever como falar, como ato existencial. O gesto de dar à luz um filho — e também de dar-lhe a luz — é do mesmo modo o ato de conduzi-lo pelos meandros dessa mesma luminosidade:

Você que me deu a luz

e agora me conduz. ("Mamãe", p. 45)

Essa condução é do nível dos afetos, mas também, sem dúvida alguma, se relaciona com o estar no mundo e estar envolvido em tudo o que ele nos coloca. Assim, por exemplo, se fala da educação num mundo consumista:

Quando vamos ao shopping

e eu insisto em gastar,

você diz: "na volta posso pensar",

mas eu sei que não vai comprar." ("Nossas mães", p. 49)

Num exorcismo da solidão, a qual já nos segue desde a nossa infância, levanta-se o desejo da presença materna, presença que nos dá sentido para a vivência:

Quero você sempre comigo.

Quando você sai,

deixa meu coração partido

e a casa fica sem sentido. ("Te amo, mãe!", p. 25)


A não presença da mãe é abertura para o sentimento de autoexílio, ausência de si mesmo que o filho experimenta:

Mãe, em vez de ficar exilado,

eu prefiro ficar ao seu lado. ("Mãe", p. 37)

Tal sentimento negativo é afugentado em outros poemas, quando se tem certeza da presença (mesmo que na ausência) da figura materna:

Quando eu estiver sozinho no mundo,

sua luz vai me guiar.

Você é a mais importante!

Sempre vou te amar. ("O valor das mães", p. 51)

 

Quando a noite chega,

ela me abraça e me beija

e mesmo em meu quarto sozinho,

sei que ela não me deixa. ("Mãe", p. 69)


Os poemas dos jovens escritores não deixam de representar o lado humano do amor, pois até mesmo os sentimentos filiais e maternais são atravessados pelo que há de humano em nós, com erros e acertos:

Sempre brigamos

e também nos desculpamos.

Somos humanos;

assim, erramos e amamos! ("Mãe", p. 59)

Outra questão a ser pontuada é a diversidade na representação das mães, a pluralidade de identidades, a certeza poética e vital de que na existência não existe o estereótipo de Mãe Universal:

Tem mães que são atletas,

praticam até natação.

Outras são tranquilas

e adoram ouvir canção! ("Mãe", p. 75)

Assim são estes poemas: expressões dos afetos e do mirar o existir de mães e filhos. Passos primeiros e primordiais dos pés (e das mãos) no jogo com as palavras, para extrairmos delas as vozes outras e as nossas, a leitura amorosa e amante, a escritura que nos constrói poeticamente na vida.


© Evaldo Balbino — setembro de 2021