Na igreja
cheia, outro dia, fui obrigado a escutar o ancião proclamando o ódio.
O que
chamo aqui de ancião é um cargo, título dado numa igreja ao pastor-mor,
padre-mor, cooperador-mor... e os nomes vão variando de denominação para
denominação religiosa.
O ancião,
em sua sabedoria, cancelou um momento glorioso em que fiéis (a Deus e não ao
homem – pelo menos assim desejo) agradeceriam à divindade por dádivas
recebidas. Acho lindo esse momento: aquele em que, com lágrimas alegres e
júbilo sem par, as pessoas vão lá adiante aos microfones e propalam sua fala
aos quatro ventos, dizendo que Deus é O que opera em nossas vidas.
Esse
momento foi interrompido. Isso porque o ancião achou por bem discursar sobre
algo muito sério com a Igreja. E falou sim de algo sério.
Em suas
palavras, “o mundo está pervertido, e agora, nas escolas, querem apregoar a
nossos filhos e netos a tal da ideologia de gênero”.
E
continuou a sua rancorosa homilia, numa mistura terrível de conceitos, não
sabendo discernir “gênero” de “sexualidade”. “Nascemos homem e mulher – está
escrito isso no livro de Gênesis. Assim nascemos, e qualquer outra
possibilidade é pecado, é fuga da natureza de que somos constituídos
divinamente. Agora querem que o indivíduo fique exposto a diferentes experiências
sexuais, para depois decidir o que vai querer na vida”.
Com tais
palavras e outras mais confusas ainda, sua voz foi ecoando brava pela igreja,
reboando como se fosse a voz de Deus pela abóbada do templo. Um deus terrível, de leis e de guerra, de ira e de fúria. E acrescentou que
“não devemos, de modo algum, permitir que professores ensinem esse absurdo nas
escolas”.
Deu-me
vontade de perguntar a esse senhor (tão lido, tão cheio de formação acadêmica)
se não seria melhor, primeiro, ele se informar mais sobre o que é ideologia de
gênero, o que é sexualidade e o que é, mais especificamente, sexualidade
humana. Tive vontade de dizer-lhe que as questões de gênero podem até abarcar
as de sexualidade, mas que vão além destas. Sabendo discernir tudo isso, talvez
ele continuasse com seus preconceitos, mas pelo menos não faria mistura tão confusa
numa única panela. E a sua panela, por sinal, não é a das bruxas, mas sim
aquela em que estão condenadas ao cozimento eterno (do inferno!) as vozes
heréticas dos que estudam as questões de gênero e denunciam as opressões
históricas que muitos sujeitos já sofreram por não se enquadrarem em parâmetros
milenares.
Além disso,
deu-me vontade de perguntar a esse mesmo senhor o que ele faria em sala de aula,
sendo professor de crianças e/ou adolescentes, se tivesse que lidar com gêneros
que não os tradicionais masculino e feminino, homem e mulher. Por acaso ele
bradaria com a Bíblia em riste sua
voz contra as diferenças? E que mau uso estaria fazendo ele da Bíblia! Esta coletânea linda de livros
que, via de regra, se usa como espada cortante e perversa!
Poderão
dizer que não fui obrigado a ouvir tudo isso, que eu poderia ter saído da
igreja naquele momento, que se fiquei ouvindo foi porque quis. Poderão até
aplicar a mim aquele velho ditado: “Os incomodados é que se retirem!”.
Mas
escrevo estas linhas é para defender o desejo de qualquer pessoa de estar
congregada num templo, naquela busca de união entre os seus pares que querem o
sagrado. Cada um ali, roçando sua fé no outro, fazendo isso no intuito de criar
mais forças para sentir as seivas espirituais de luz e vida. Ninguém é obrigado
a ir a um templo, mas tem o direito de fazê-lo. Como fazer isso, no entanto, se
ali mesmo na igreja muitas vozes oficiais se insurgem contra esses mesmos
sujeitos desejantes de Deus?!
Do jeito
que as coisas quase sempre caminharam e ainda caminham nos santuários, terminamos
por ver aquilo que profetas (do porte de um Isaías, Jeremias ou Ezequiel) já denunciavam em seus discursos poéticos e firmes: certos pastores acabam por espalhar as ovelhas ao invés de reuni-las. Aliás, essa denúncia do mesmo modo foi atribuída ao amoroso Cristo pelos escritores dos quatro evangelhos.
Também é
nas mesmas igrejas que sempre aparece o discurso – divulgado ou tácito – da
exclusão religiosa. Quase sempre aquele pensamento do “aqui” e do “lá de fora”,
de que quem está na igreja tem Deus e de que os que estão fora dela passam ao
largo das vestes divinas. Sempre, quase sempre, aflora a ideia de que existem
por um lado os fiéis salvos e por outro as criaturas; por um lado os homens
naturais com seus pecados, por outro os homens espirituais, os despidos das
carnalidades que devem ser esconjuradas.
Ai, meu
Deus! Até quando tanta divisão, tanto binarismo!?
Uma vez ouvi
um padre dizer que não se deve levar a palavra de Deus a um cigano, pois
ciganos são terríveis. Ora essa, é bom mesmo que nem se leve tal palavra!
Deixemos o cigano (quaisquer ciganos) viver a(s) sua(s) experiência(s)
religiosa(s) ao longo da vida. Sabemos abundantemente o que essa tal ideologia
de levar a palavra de Deus muitas vezes aprontou pelo mundo afora. Quantas atrocidades,
quantas perseguições, quantos massacres físicos e culturais ocorreram!?
E o que
as religiões deveriam ser acabam não sendo: religare.
Muitas vezes (não sempre, graças a Deus!) nos separam do amor de Deus e nos
separam dos nossos próximos, do mundo, da vida bela em suas diferentes
manifestações.
Parece
que a prática do exorcismo, tão maléfica e mal praticada em diversos momentos
da história da igreja católica, deve voltar agora. É urgente que ela volte. Mas
os demônios a serem exorcizados são tão nossos, cotidianos: os diabólicos
preconceitos, as danosas divisões e exclusões, os discursos de ódio, as
práticas de terror, a recusa violenta das diferenças. Tudo isso e muitos outros
males que as sociedades humanas foram desenvolvendo. Tudo isso é sim uma
legião, a verdadeira legião que deve ser combatida.
Combatida
inclusive aqui no Brasil, onde assistimos cada vez mais, e principalmente nos
últimos anos, aos discursos de ódio e preconceitos ganhando ares de legalidade,
defendidos dentro do âmbito legislativo de nosso país. Não é à toa que, semana
passada, Judith Butler, filósofa norte-americana especialista em estudos de gênero,
foi vítima de agressões verbais e físicas no aeroporto de Congonhas,
perpetradas por fundamentalistas.
Os tempos
são cada vez mais temerosos. Não se trata aqui de idealizar o passado. Onde o
homem já pisou, males abrolharam. O que nos assusta é eles germinarem, e com
muita força, num mundo (e aqui não falo só do Brasil) onde já passamos por
vastas experiências de suposto amadurecimento democrático publicado aos quatro
cantos.
O tempo vai passando e deixando lições. Mesmo assim, continuam se erguendo espinhos. Exorcizemos tais demônios!
O tempo vai passando e deixando lições. Mesmo assim, continuam se erguendo espinhos. Exorcizemos tais demônios!
© Evaldo Balbino
Como sempre escreve o q queria eu expressar. Completamente extasiada ... êxtase total..ler o q penso.. tanto medo já tive de ser castigada por não estar frequente a tal religião..... sendo que o q vale é o agir com amor....e q diferença faz o gozo sexual. ...ora...deixe as pessoas irem seguindo sem tantas cobranças.
ResponderExcluirEvaldo, parabéns! Perfeito!
Clébia, é isso mesmo, minha querida. Devemos dizer, falar, discursar e agir sempre em prol das liberdades das pessoas. Um beijo grande!!!!
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